PARADOXOS BÍBLICOS
Robert D.
Brinsmead
[Este artigo é da década de
70 do século passado que retirei de uma revista chamada “Pregoneros de Justicia”
em espanhol. Fiz a tradução para o português. Seu autor é um teólogo australiano
chamado Robert D. Brinsmead]
As verdades da revelação divina estão repletas de
paradoxos. Parece que a Bíblia está cheia de contradições. Isto se deve a que, freqüentemente,
a verdade deve apresentar-se à mente humana mediante duas declarações que
aparentam estar em contradição.
Faz-se um grande dano à sã doutrina quando o homem
se inclina para um só lado do paradoxo e ensina esta parte como a suma total da
verdade. Outros pretendem ter o poder de “harmonizar” com facilidade estas
aparentes contradições. Errando ao não perceber que a verdade é um paradoxo em
si mesmo, torcem um lado do paradoxo para fazê-lo “harmonizar-se” com o outro.
Finalmente, isto se converte em uma distorção da Palavra de Deus. Alguma vez
você já se viu em um espelho que reflete sua imagem distorcida? A imagem retém
todas as suas características essenciais, mas fora de proporção.
A teologia sistemática tem seu lugar
correspondente, porém existe o perigo de reduzir os aspectos paradoxais e
variados da verdade infinita a um sistema de lógica humana.
Ilustremos estes princípios com alguns exemplos da
Palavra de Deus.
1) Temor
e Confiança
Os escritores da Bíblia
aprovam o espírito que teme a Deus e treme ante a sua Palavra (veja Is. 66.5;
Fl 2.12; Hb 4.1; Ap 14.7). Eles também nos exortam a que nos acheguemos a Deus
sem temor: “cheguemo-nos pois confiadamente ao trono da graça ... tendo
liberdade para entrar” (Hb 4.16; 10.19).
Aqui temos um paradoxo.
Admoestam-nos a viver diante de Deus com temor e sem temor; temendo e
confiando. Percebendo a verdade deste paradoxo, Lutero disse que o cristão deve
viver com certo tipo de “confiança desesperada”.
Consideremos agora a seria distorção
que resultaria em enfatizar só um dos dois lados do paradoxo. A alma tímida e
desconfiada de si mesmo necessita da segurança de que o grande Rei, que está
sentado sobre o trono da eternidade, abra de par em par os portais eternos de
seu Reino ao toque singelo de uma criança. Por outro lado, o presunçoso da “Revolução
de Jesus” deve confrontar-se com a verdade de que a reverência e o temor
piedoso compõem a primeira lei da adoração. Nosso Deus é um Deus terrível em
majestade, em santidade, em pureza e em ódio contra o pecado. Não devemos nos
atrever a aproximarmo-nos dele com uma familiaridade descuidada, nem tão pouco
fazer dele um personagem qualquer. Vem agora, à nossa memória, o que disse
Lutero acerca de alguns dos espíritos radicais de Wittenberg. O reformador
queixou-se de que eles “falavam a Deus como se ele fosse o aprendiz de um
sapateiro”. Nós também protestamos contra a familiaridade irreverente que
caracteriza grande parte do avivalismo popular de hoje em dia. Não temos
necessidade de líderes jovens que meramente aconselham outros jovens a
chegar-se a Deus com confiança temerária. Isto os faria cair no erro da
presunção irreverente. A juventude necessita de toda a Palavra de Deus. Quando
aprenderem a temer à Majestade do Céu e a tremer ante o assento de seu juízo,
então compreenderão apropriadamente o que significa ter plena confiança na
presença de Cristo e no nome de Jesus.
2) Repouso
e atividade
O Evangelho é um chamado
ao repouso. O Senhor nos convida: “vinde a mim todos que estais cansados e
sobrecarregados e eu os aliviarei” (Mt 11.28). E o apóstolo Paulo diz: “porque
o que entrou em seu repouso, também tem repousado de suas obras, como Deus das
suas” (Hb 4.10). No entanto, o crente em Jesus é chamado ao trabalho árduo.
Jesus continua: “tomai sobre vós meu jugo (um instrumento de trabalho árduo e
de serviço pesado)” (Mt 11.29). O apóstolo Pedro admoesta aos crentes: “vós
também, pondo toda a diligência, ajuntai à vossa fé ... procurai tanto mais
fazer firme vossa vocação e eleição” (I Pe 1.5,10). E, em outro lugar diz:
“cingindo os lombos do vosso entendimento” (I Pe 1.13).
Tanto Jesus como seus apóstolos
chamam-nos repetidamente a uma luta, a um labor, a um trabalho, a cuidar de
permanecer nas boas obras, a levar a cruz, a sofrer tribulação, a lutar a boa
peleja e correr a carreira cristã com paciência.
Aquele que mais
plenamente descansa em Cristo e sua salvação gratuita será o mais fervoroso em
seu serviço a Deus. Por outra parte, uma ênfase contínua sobre o descanso em
Cristo e em esperar confiadamente no Senhor, excluindo uma ênfase adequada
sobre o lado oposto, conduz até o quietismo.
Uma ênfase exagerada sobre o dever da atividade cristã conduz a um ativismo pietista. Pelo visto, a verdadeira
mensagem da justificação pela fé está no meio de duas distorções.
3) Fé e Obras
Foi Melancton quem disse:
“somos justificados somente pela fé mas a fé que nos justifica nunca está só”.
O grande apóstolo Paulo se destaca por sua insistência sobre a fé como único
instrumento necessário para receber a graça de Deus que justifica. Contudo,
Paulo pode ser igualmente enfático sobre a questão da necessidade do serviço de
amor. Ninguém se salvará por suas boas obras; no entanto, é igualmente certo
que nenhuma alma que permaneça na ausência de boas obras será salva.
As pessoas podem
tornar-se indolentes quando se dá uma ênfase unilateral sobre a fé. Lutero se
viu obrigado a queixar-se disto. Certamente, ele também estava completamente
consciente do erro oposto. O reformador comparou seus esforços em favor das
pessoas de seu povo com a tarefa de montar um cavaleiro alemão embriagado sobre
um cavalo: quando se suspende ele por um lado do cavalo, cai pelo outro lado.
Alguns mestres seguiram dizendo: “você não tem nada que fazer. Tudo que tem que
fazer é crer”. Não negamos que haja algo de verdadeiro nesta declaração. Se se
toma a fé em seu sentido bíblico mais amplo e completo, a fé é a única coisa
necessária. A pregação da cruz de Cristo cria fé e esta fé permanece ativa no
serviço a Deus e aos homens. A fé não é um ópio para colocar as pessoas para
dormirem. A fé é um estimulante que desperta toda a energia da alma. Nunca se
deve deixar a impressão entre as pessoas de que as boas obras não são
necessárias ou que não têm importância. Ninguém pode ler as lições práticas de
Jesus Cristo e obter esta impressão distorcida.
Os escritos de Paulo
ensinam claramente duas coisas: a justificação pela fé e um juízo final de
acordo com as obras. Pode ser que estas duas grandes verdades pareçam
paradoxais mas é necessário ensinar ambas. Santiago Buchanan, em seu grande
clássico sobre a doutrina da justificação pela fé, registra as palavras que
ouvia de seu professor Dr. Chalmers: “desejo que todo pregador enfatize
veementemente sobre estas duas doutrinas: uma justificação presente por graça,
pela fé somente; e um juízo futuro, de acordo com as obras”. A isto, Buchanan
acrescenta: “todo ministro fiel tem feito uso de ambas para se guardar, por um
lado do perigo do legalismo da justiça própria e, por outro lado do
antinomianismo prático” (The Doctrine of
Justification, pg. 252,253).
4)
Lei e Evangelho
Toda a Bíblia divide-se
nestas duas categorias: a lei e o evangelho. A lei requer que ajamos, atuemos e
corramos no caminho dos mandamentos de Deus. Qualquer coisa que nos indique o
que devemos fazer, como devemos viver e o que temos de ser, é lei. Por exemplo:
“amarás a teu próximo como a ti mesmo” (Lv. 19.18); “amemo-nos uns aos outros
com amor fraternal” (Rm 12.10); “não ameis ao mundo” (I Jo 2.15); “tendes paz
uns com os outros” (Mc 9.50). A lei não é um ensino só do Antigo Testamento.
Aparece também em todos os ensinos de Jesus e de seus apóstolos. Em contraste
com isto, o evangelho proclama: “não temais, estai firmes e vede a salvação que
Jeová fará” (Ex 14.13); “aquietai-vos e sabei que eu sou Deus” (Sl 46.10). Não
se diz o que devemos fazer para Deus. Proclama o que o braço poderoso de Deus nos
deu gratuitamente. Em Cristo Jesus, Deus nos tem dado tudo o que a lei requer
de nós (Rm 10.4), a saber, perfeita justiça para seu cumprimento e perfeita
expiação para sua satisfação.
Edmund Schlink diz em seu
livro Theology of the Lutheran
Confessions que “assim como não se pode pregar a lei sem Cristo, de igual
modo não se pode pregar a obra de Cristo sem a lei” (pg. 86). Como podemos
conhecer nosso pecado e a magnitude de nossa dívida sem a lei? (Rm 3.20; 7.7-13).
Aquele que nunca teve a lei como aio para instruí-lo no tocante a amargura do
seu pecado, nunca poderá apreciar a doçura do evangelho da graça salvadora.
Mais ainda: dado que o evangelho nos dá tudo o que a lei requer de nós (Rm
10.4), como poderíamos apreciar o que Deus nos há dado sem ter escutado
primeiramente a lei?
Deve-se distinguir
cuidadosamente entre a lei e o evangelho. Nisto consiste a pedra angular da
Reforma. Contudo, ambas as coisas devem ser preservadas em uma tensão apropriada,
como diz a Fórmula de Concórdia: “cremos e confessamos que estas duas doutrinas
(a lei e o evangelho) devem imiscuir-se na igreja de Deus sempre e sempre, até
o fim do mundo” (Book of Concord, pg.
261).
O poder da pregação do
evangelho será proporcional à da pregação da lei. Permita-se que a lei caia em desuso
e o evangelho se converterá em mero sentimento, em “graça barata”, em uma
mensagem que cansa o mundo. Proclame-se e exalte-se a lei de Deus como a expressão
de sua santa vontade e os pecadores clamarão: “que devo fazer para ser salvo?”.
Por outra parte, quando se põe de lado o evangelho, triunfam o moralismo, o
farisaísmo e a justiça própria e os defensores do evangelho social tratam de
estabelecer o Reino de Deus mediante a atividade humana.
Se nos mantemos na fé da
doutrina da Reforma, no tocante à justificação pela fé, veremos que o evangelho
não cancela a lei e nem a lei debilita o dom gratuito do evangelho. Não se pode
descuidar de um sem descuidar do outro
Vivemos em uma era em que
a autoridade desprezada. Por trás disto, está a hostilidade humana contra a
autoridade de Deus, contra seu governo e contra sua lei. Grande parte da
pregação atual no tocante à justificação pela fé, entre os chamados
protestantes, nada mais é que um sentimentalismo que não leva os ouvintes ao
arrependimento por haver transgredido a santa lei de Deus. Nem tampouco produz
vidas que mostrem grande respeito por essa lei. Tal pregação, nem de longe, se
parece com a mensagem dos puritanos, ou dos reformadores ou ainda dos
apóstolos.
A lei e o evangelho
constituem um paradoxo. Devem preservar-se em uma tensão adequada. Se não
fizermos isto, vamos distorcer o evangelho de Cristo.
5)
A Natureza do Cristão
O cristão é um santo ou um
pecador? Lutero lutou com este enigma até que pode dizer a famosa frase que
susteve toda a armação teológica da Reforma: simul justus et peccator, ou seja, “simultaneamente, justo e
pecador”. Este é um tremendo paradoxo. O partido católico-romano não pode
compreendê-lo. Porem, quanto mais examinamos este paradoxo, mais luz irradia
dele, aclarando outros mistérios que aparentemente não teriam solução.
O crente em Jesus Cristo é
justo ante Deus porque Deus mesmo o declara justo por causa de Cristo. Além
disso, mediante o Espírito, torna-se uma nova criatura, e por causa disto,
começa a comportar-se retamente. Por outro lado, nunca deve imaginar-se sem
pecado (I Jo 1.8). Deve confessar a pecaminosidade de sua natureza (Rm 7.14-25)
e rogar constantemente pelo perdão ao dar-se conta que, continuamente, não
alcança o ideal de Deus, apesar de seus melhores esforços e deveres mais
sagrados (Ec 7.20; Rm 3.23). O crente tem a mesma natureza pecaminosa que têm
os demais homens. Por esta razão, é que a carne luta contra o Espírito e o
Espírito contra a carne (Gl 5.17).
A fim de obter uma visão
correta da vida cristã, devemos considerar ambos os lados do paradoxo: uma
vitória diária sobre o pecado e a natureza pecaminosa mediante o poder do
Espírito de Deus e a inevitável maldade da pecaminosidade humana.
O “movimento de santidade”
enfatiza a vida vitoriosa como uma possibilidade para o cristão. Centraliza-se
em algumas passagens da Escritura, tais como: “tudo posso naquele que me
fortalece” (Fl 4.13). Enfatiza muitas verdades que a fria ortodoxia formalista
necessita escutar. Não obstante, o “movimento de santidade” cai em uma séria
distorção, ao prestar pouca atenção ao outro lado do paradoxo. Omite a
realidade da inevitável pecaminosidade de todos os santos nesta vida, o qual
está registrado em termos inequívocos em Rm 7.14-25.
O movimento pentecostal
moderno apela ao desejo humano de escapar do contínuo sentido da pecaminosidade
pessoal e da incapacitação humana, que sempre foram imposições hereditárias por
causa da natureza pecaminosa que até os santos possuem. Desta forma, muitos são
tentados a buscar experiências sobrenaturais “no Espírito”, que os libere da
tensão diária de ser “simultaneamente justo e pecador”. Grande parte da ênfase
de santificação pentecostal vem de tratar de obter prematuramente a glória
porvir, sendo um intento de trazer ao agora do processo histórico, o “ainda
não” da eternidade (ver I Jo 3.2).
Por outro lado, uma grande
maioria dos que seguem a corrente mais ortodoxa do protestantismo cai na
distorção conhecida como negativismo. Isto se depreende do fato de sustentar
uma ênfase correta, mas desbalanceada, sobre a pecaminosidade humana. Como conseqüência,
um grande número de cristãos professos desculpam com facilidade seu pecado pessoal,
abrigam-se na misericórdia de Deus e esperam que a eternidade lhes traga a
vitória que devem experimentar aqui no presente.
6)
Segurança e perigo de cair
Um presbiteriano calvinista
encontra-se em certa ocasião com um metodista arminiano e lhe diz:
– “Tenho ouvido que vocês, metodistas, crêem que se
pode cair da graça”.
– “E eu tenho ouvido que vocês, presbiterianos,
crêem que se pode roubar cavalos”, replica o metodista.
– “Claro que não. Nós não cremos em tal coisa”, diz
o presbiteriano.
– “Mas, vocês não crêem que é possível que um
presbiteriano roube um cavalo?”, argúi o outro.
– “Claro que sim. Isto é possível, porém nós não
cremos nisto (em roubar cavalos)”, contesta o presbiteriano.
– “Nem tampouco nós cremos em cair da graça”, diz o
metodista.
A
maioria de nossos leitores deve entender dos argumentos que se usam para sustentar
tanto o calvinismo quanto o arminianismo nesta área teológica. O calvinista
gosta de enfatizar a segurança do crente (as tradições menos sofisticadas do
calvinismo reconhecem isto como “uma vez salvo, para sempre salvo”). O
arminiano encontra-se bem equipado com uma série de textos que admoestam o
crente a respeito do perigo de cair da fé em Cristo.
Depois
de haver feito uma conferência em Nova Zelândia, este editor teve o prazer de
atender a um cavalheiro cristão que se aproximou para perguntar. Desejava saber
se este escritor estava solidamente fundado sobre o que ele considerava ser a
base da Reforma: o “uma vez salvo, para sempre salvo”. A conversa foi
semelhante a esta:
– “Você não nega a doutrina da segurança eterna para
o homem que aceitou a Cristo, não é?”, perguntou ele.
– “Eu creio na segurança eterna do crente. Porem,
recordo que o crer bíblico não é só um ato. No Novo Testamento, a palavra crer
escreve-se geralmente em um tempo presente contínuo”, respondi a ele.
– “Então posso presumir que você não é um
arminiano?”, ele perguntou.
– “Isso é correto”, respondi.
– “Fico contente de ouvir isto”, ele exclamou.
– “Diga-me, sobre que escrituras você fundamenta sua
doutrina da segurança eterna?”, eu lhe perguntei.
– “’Eu lhes dou a vida eterna; não perecerão jamais,
nem ninguém as arrebatará das minhas mãos (Jo 10.28). Aos que me deste, eu os
guardei e nenhum deles se perdeu (Jo 17.12). E aos que predestinou, a estes
chamou; e aos que chamou, a estes justificou; e aos que justificou, a estes
também glorificou (Rm 8.30)’”, respondeu ele.
– “Nós dois podemos ter muita satisfação nestas
escrituras que prometem segurança ao crente. Mas você crê nestas outras
escrituras? ‘Pois os ramos, dirás, foram quebrados para que eu fosse enxertado.
Bem, por sua incredulidade foram quebradas, porém tu, pela tua fé, estás em pé.
Não te ensoberbeças mas teme’ (Rm 11.19-20). ‘Todo ramo que, em mim, não dá
fruto, ele arrancará’ (Jo 15.2). ‘Golpeio meu corpo e o coloco em servidão,
para que não aconteça que, tendo ensinado a outros, eu mesmo venha a ser desqualificado’
(I Co 9.27). ‘Pelo qual, irmãos, tanto mais procurai fazer firmes a vossa
vocação e eleição; porque fazendo estas coisas não caireis jamais’ (II Pe
1.10). ‘E a vós outros também, que noutro tempo éreis estranhos e inimigos em
vossa mente, fazendo más obras, agora vocês foram reconciliados em seu corpo de
carne, por meio da morte, para apresentar-vos santos, sem mancha e
irrepreensíveis diante dele; se, em verdade, permaneceis fundados e firmes na
fé e sem se moverdes do evangelho que haveis ouvido, o qual se prega a toda a
criação que está debaixo do céu; do qual, eu, Paulo, fui feito ministro’ (Cl
1.21-23). ‘Quanto maior castigo pensais que merecerá o que pisar no Filho de
Deus e tiver por imundo o sangue do pacto no qual foi santificado e fazer afronta
ao Espírito da graça?’ (Hb 10.29). ‘De Cristo vos desligastes, vós que pela lei
vos justificais, da graça decaístes’ (Gl 5.4). Muito bem, você crê também
nestes textos?”
– “Sim, tenho que crer nestes textos porque estão na
Bíblia”, ele respondeu.
– “Porem, você realmente leva a sério estas
escrituras tanto quanto você faz com os textos que agora a pouco me citou sobre
a segurança do crente?”, perguntei?
– “Suponho que não”, ele me disse.
– “Por este motivo é que Lutero adotou a posição
correta a respeito deste assunto. Ele compreendeu plenamente que a verdade, no
tocante a este assunto, podia expressar-se somente por dois grupos de declarações
que aparentavam opor-se entre si. Sua ênfase não era nem calvinista e nem
arminiano. Ele aceitou cada lado do paradoxo com igual seriedade e preservou
assim a tensão apropriada entre a confiança na sua segurança em Cristo e o
temor que procede da possibilidade de cair da graça. Peço que não tome com
menor seriedade os textos que citou. Simplesmente eu lhe exorto a que tome, com
igual seriedade, o outro lado do paradoxo. A menos que faça isto, sua visão da
verdade será distorcida”, disse eu.
– “Muito obrigado. Quero estudar um pouco mais este
assunto”, ele terminou.
7)
Predestinação e expiação
para todos
Alguns de meus amigos
sustentam que eles devem crer em uma “expiação limitada” a fim de poder ser
consistentes com a doutrina da predestinação. Algumas cartas dirigidas a este
editor, reclamam que toda a Reforma se fundou sobre os conceitos da
predestinação e da expiação limitada. Nós admitimos rapidamente que,
humanamente falando, a predestinação e a expiação limitada são idéias
consistentes entre si mesmas. Mas, nos apressamos também a dizer o seguinte:
“pontos de vista extremistas têm a vantagem de ser surpreendentemente consistentes”
(H. Bezzel, Berufung und Beruf, pag.
64). Tal consistência se adquire ignorando ou destruindo a natureza paradoxal
da verdade divina.
Além disso, devemos
assinalar que o maior reformador cria na predestinação e numa expiação não
limitada. Alguns dirão: “desafortunadamente, Lutero não foi consistente”. Se a consistência
significa destruir o paradoxo bíblico, Lutero seria o primeiro a admitir que
seu ensino não fosse consistente. Porem, ele estava muito consciente que as
verdades da revelação divina, em geral, aparentam ser antitéticas e ilógicas
para a razão humana.
Paulo não começa sua carta
aos romanos com o tema da predestinação. Ele parte da justificação para a fé
até chegar à predestinação. Ele faz isto para mostrar que Deus é o único autor
de nossa fé e que toda noção que insinue o mérito humano deve ser rechaçado.
Até os reformadores que
adotaram o ponto de vista de um determinismo mais rígido, não defenderam seu
ponto de vista porque este tivera alguma validade intrínseca. O que eles
perseguiam era a exclusão do mérito humano no plano salvador. Lutero achou útil
a doutrina da predestinação quando disputava com homens como Erasmo, dado que
esta doutrina acabava com toda a iniciativa, no assunto da salvação, das
vontades humanas caídas e colocava toda a iniciativa salvadora sobre a vontade
divina unicamente.
Olhemos agora o outro lado
do paradoxo: o trabalhar e o morrer de Cristo Jesus pelos pecadores do mundo
inteiro. Ensina a Bíblia que Jesus morreu por todas as pessoas? “E ele é a propiciação
por nossos pecados; e não somente pelos nossos, mas também pelos do mundo
inteiro” (I Jo 2.2); “porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu
Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê, não pereça, mas tenha a
vida eterna” (Jo 3.16); “porque Deus encerrou a todos debaixo da incredulidade,
para ter misericórdia de todos” (Rm 11.32); “porem, o anjo lhes disse: ‘não
temais, pois eis que vos trago novas de grande alegria que será para todo o
povo, que nasceu hoje, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor.’”
(Lc 2.10,11); “porque todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus” (Rm
3.23); “porque não há acepção de pessoas para com Deus” (Rm 2.11); “assim pois,
pela transgressão de um, veio a condenação a todos os homens, assim também,
pela justiça de um só homem, veio a justificação da vida a todos os homens” (Rm
5.18); “porque há um só Deus, e um só mediador entre Deus e os homens, Jesus
Cristo homem, o qual se deu a si mesmo em resgate por todos, do qual se deu
testemunho em seu devido tempo” (I Tm 2.5,6); “que por isto mesmo, trabalhamos
e sofremos opróbrio, porque esperamos no Deus vivo, que é o Salvador de todos
os homens, principalmente dos que crêem” (I Tm 4.10); “porque a graça de Deus,
que traz salvação a todos os homens, se manifestou” (Tt 2.11); “o Senhor não
retarda sua promessa, ainda que alguém a tenham por tardia, senão que é
paciente para conosco, não querendo que ninguém se perca, mas que todos cheguem
ao arrependimento” (II Pe 3.9).
Não faz muito tempo, este
escritor leu um livro sobre a predestinação, escrito por um calvinista
fervente. Uma grande seção de seu livro estava dedicada a “explicar” e “harmonizar”
com seu determinismo rígido, textos tais como os que citamos no parágrafo
anterior. Depois de muitas páginas repletas de explicações detalhadas e de
trabalho minucioso, expressou sua satisfação de ter um ponto de vista
consistente. Porem, “pontos de vista extremistas têm a vantagem de ser
surpreendentemente consistentes”.
Em certa ocasião, Martinho Lutero
recebeu uma carta de um homem profundamente angustiado pela dúvida de se era ou
não um dos predestinados para a salvação. O reformador respondeu assim: “te
suplico que olhes para as palavras de João 3.16 para determinar como e de quem
é que o texto fala ‘de tal maneira amou Deus o mundo’ e ‘para que todo aquele
que nele crê’. Veja bem, ‘o mundo’ não significa Pedro e Paulo somente, mas a
raça humana completa. Todos juntos. E aqui não se exclui a ninguém. O Filho de
Deus foi entregue por todos. Todos devem crer e todos que crêem não se perdem.
Rogo-te que agarres o teu nariz para que determines se és ou não um ser humano
(isto é, parte do mundo) e se pertences ou não, como qualquer outro homem, ao
número dos que se incluem na palavra ‘todo’” (What Luther says, pag. 608).
Uma das razoes do
surpreendente êxito do reavivamento wesleyano foi seu apelo universal de que
Cristo morreu por todos. As alegres e gratas novas da graça ilimitada de Deus
puseram os corações a cantar, as vozes a soar, os pés a correr. Wesley
aborrecia o pensamento de qualquer tipo de frio determinismo. Seus críticos
puderam assinalar alguns pontos débeis em sua teologia, porém Wesley tinha um
conceito geral no tocante ao caráter de Deus muito melhor do que tinham os seus
críticos mais ortodoxos. E poucos negam que ele fez mais bem do que todos eles.
Não distorçamos as
declarações simples da Bíblia para acomodá-las a nosso esquema de teologia
sistemática.
8)
Justificação e Santificação
Quando tratamos do assunto
da relação que existe entre a justificação e a santificação, não podemos deixar
de fazê-lo sem falar de paradoxos. Toda a história da igreja é uma luta por
sustentar ambas as facetas em uma tensão adequada.
Somos justificados
unicamente mediante uma obra efetuada fora
de nós mesmos, mas somos santificados mediante o Espírito de Deus que age dentro de nós. A essência do legalismo
católico-romano consiste em depender da obra de renovação interna para ser
aceito por Deus. No entanto, a essência do antinominianismo protestante
consiste em supor que podemos ser santificados e capacitados para viver no céu
mediante a obra que Cristo efetuou fora de nós.
Nenhuma quantidade de
santificação pode assegurar a entrada de alguém no reino da graça; mas a
justificação sempre cai em perigo se alguém não se exercita na santificação. A
obediência não pode assegurar-nos a bênção do perdão; porém por uma
desobediência persistente e voluntária pode-se vender a primogenitura.
Contudo, agora precisamos
dar uma olhada no outro lado do panorama. A santificação cai em perigo se não
se baseia na justificação. Deve haver um retorno constante à justificação, à
palavra de perdão, se é que se quer preservar a santificação livre do
farisaísmo e da justiça própria. As orações e o serviço piedoso são aceitáveis
apenas pela graça. A verdade da justificação à responsabilidade tudo o que
fazemos. O verdadeiro crescimento cristão existe só aonde o apreço pela
justificação vai junto no crescimento. Em nossa santificação progressiva, nunca
havemos de chegar a um ponto tal donde nossa aceitação para com Deus não
descanse inteiramente sobre o perdão dos pecados.
A necessidade constante da
justificação pela fé significa que a pecaminosidade humana é um fato do qual
não podemos escapar, porquanto não há homem sobre a terra que não peque (Ec
7.20), e porque todos permanecem longe de alcançar a glória de Deus (Rm 3.23).
Porém, a santificação nos instrui em nosso dever positivo de evitar o pecado.
Por um lado nos chama a repousar, por outro lado, a uma vida de fervorosa
atividade.
A justificação nos dá a
perfeição e a santificação nos motiva a dirigir-nos até ela. Mediante a fé que
justifica, o coração fica limpo de todo pecado; contudo, Deus nos chama a
continuar na purificação de nossas almas mediante a obediência e a verdade.
Assim, como estes, podemos mencionar muitos aspectos mais que guardam uma
relação paradoxal entre a justificação e a santificação. Esta relação nós
também conhecemos como o paradoxo da possessão presente e a esperança futura, o
paradoxo de sermos puros e, ao mesmo tempo, impuros, de possuir todas as coisas
e de não ter nada (II Co 6.10), a de descansar na fé e trabalhar em amor, de
sermos livres pela fé e servos de todos por amor, de sermos consolados e admoestados.
Também vem à nossa memória, a experiência paradoxal do grande apóstolo: “somos atribulados
em tudo mas não angustiados; em apuros mas não desesperados; perseguidos mas
não desamparados; derrubados mas não destruídos; levando no corpo sempre, em todos
os lugares, a morte de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em
nossos corpos. Porque nós que vivemos estamos sempre sendo entregues à morte
por causa de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne
mortal” (II Co 4.8-10).
Como relacionar-se com o paradoxo
Nesta vida, devemos viver
aceitando os paradoxos de ter e não ter, de ser justos e injustos, de estar
completos e incompletos, de descanso e de atividade, de crer e fazer, de confiar
e temer, de ser capaz de fazer todas as coisas mediante Cristo Jesus e de não
poder fazer o que queremos, de evitar o pecado e de confessar sua
inevitabilidade, de ser vitoriosos sobre o pecado e de lamentar que, ao fazer o
bem, o mal está em nós. Devemos aceitar os paradoxos de progresso e
arrependimento, de liberdade e sujeição, e assim por diante. Repetimos, é um
sinal de imaturidade cristã enfatizar um só lado do paradoxo com o propósito
especial de cancelar a verdade do outro lado.
A lei e o evangelho, a fé e
as obras, a justificação e a santificação e todos os outros grandes paradoxos da
Bíblia devem manter-se em uma tensão adequada. Se proclamamos a glória da graça
justificadora de Deus e imaginamos que só isto basta para motivar as pessoas a
buscarem uma vigorosa santificação, não vai demorar muito para que
compreendamos que a natureza pecaminosa necessita de advertência e admoestação
aguda no caminho da obediência. Para que a linguagem da experiência cristã não
eleve seu volume e se torne confiada, sempre deve haver um retorno à formidável
segurança da justificação; doutro modo, a santificação se transformará em um
romantismo místico ou em pretensões de completa santificação.
Pense na forma como os
aviões conseguem voar. Existem duas forças antitéticas agindo aí: a gravidade e
a velocidade. Uma não deve cancelar a outra porque o segredo da arte de voar
está em manter ambas as forças em uma tensão adequada. Se não se mantiver a
tensão adequada entre a velocidade e a gravidade, tanto o avião quanto seu
piloto vão cair. Se a gravidade cessasse, o avião se perderia no espaço em uma
órbita desconhecida.
Que Deus nos ajude a manter
uma pregação da verdade bíblica balanceada e sem distorção.
Glória a Deus, amei.
ResponderExcluirQue estudo!
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