FACULDADE TEOLÓGICA BATISTA DE SÃO PAULO
NA
IGREJA, MULHER PODE MANDAR EM HOMEM? UMA INVESTIGAÇÃO DA POSSIBILIDADE DO
MINISTÉRIO PASTORAL FEMININO NOS ESCRITOS E
TEOLOGIA
DO APÓSTOLO PAULO
Whitson Ribeiro da Rocha
SÃO PAULO
2015
Whitson Ribeiro da Rocha
NA
IGREJA, MULHER PODE MANDAR EM HOMEM? UMA INVESTIGAÇÃO DA POSSIBILIDADE DO
MINISTÉRIO PASTORAL FEMININO NOS ESCRITOS E
TEOLOGIA
DO APÓSTOLO PAULO
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito final no curso
de Bacharel em Teologia da Faculdade Teológica Batista de São Paulo.
Orientador: Prof. Ms.
Alberto Kenji Yamabuchi
SÃO PAULO
2015
RESUMO
Este trabalho investiga os escritos e teologia do apóstolo Paulo para
saber se ele deu abertura para um futuro ministério pastoral feminino. Analisa
três textos relevantes para o assunto que são: Gálatas 3.26-29, I Coríntios
11-14 e I Timóteo 2.8-15. Explana a teologia paulina que fala de duas eras: a
atual, que procede da queda de Adão e a nova era que foi inaugurada por Cristo
com sua morte e ressurreição. O povo da nova era de Cristo é a Igreja,
comunidade dos que creem nele. A
Igreja vive em duas eras ao mesmo tempo e deve conciliar estas vivências. Viver
na nova era de Cristo significa alcançar os princípios desta nova vida, que é a
de Deus. Viver na era antiga significa discernir, dentro de cada sociedade e
cultura, o que é bom e o que é mal. Este discernimento leva a Igreja a
conformar-se com os costumes locais e temporais, mas com o firme propósito de
modificá-los, sempre de acordo com os princípios superiores da nova era em
Cristo. Três costumes da época de Paulo são apresentados: a poligamia, a
escravidão e a subordinação da mulher na sociedade e na Igreja. Para cada um
desses problemas, Paulo pode conviver, pois são costumes sociais da presente
era. Ele faz isto com o firme propósito de não colocar “pedras de tropeço” na
Igreja a fim de que o evangelho possa ser pregado sem restrição e mais pessoas
sejam salvas. Mas, ao mesmo tempo, sua orientação provocará uma erosão das
bases filosóficas e ideológicas que sustentam estes costumes. Por fim, os
princípios superiores da teologia paulina levam ao entendimento de que a
mudança da cultura da sociedade leva a uma nova postura da Igreja no sentido de
vivenciar seus princípios superiores. Com a mudança cultural, abre-se a
possibilidade da mulher ser pastora. Continuam de pé os princípios paulinos de
que não devemos colocar “pedras de tropeço culturais” para que as pessoas
venham a Cristo e que nele “não há homem, nem mulher”.
Palavras-chaves:
Ministério pastoral feminino. Pastora. Teologia paulina da mulher. Costumes
e princípios paulinos sobre a mulher.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
.............................................................................................
4
2 TEXTOS
PAULINOS RELEVANTES SOBRE O MINISTÉRIO
PASTORAL FEMININO ...............................................................................
5
2.1 GÁLATAS 3.26-29
...............................................................................
5
2.2 I CORÍNTIOS 11-14
............................................................................. 8
2.3 I TIMÓTEO 2.8-15 ................................................................................15
3 UMA PROPOSTA
TEOLÓGICA PAULINA PARA O MINISTÉRIO
PASTORAL FEMININO
..............................................................................
20
3.1 A TEOLOGIA PAULINA DAS DUAS
ERAS....................................... 20
3.2 A VIVÊNCIA DA IGREJA NAS DUAS ERAS.....................................
21
3.3 A POSSIBILIDADE PAULINA DO MINISTÉRIO
PASTORAL
FEMININO............................................................................................
30
4 CONSIDERAÇÕES
FINAIS.........................................................................
33
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS...............................................................
35
1 INTRODUÇÃO
O
assunto “ministério pastoral feminino” é extremamente polêmico no movimento
evangélico brasileiro. Na Convenção Batista Brasileira, por exemplo, existe uma
ferrenha discussão hoje sobre o assunto. Em 2012, em sua assembleia anual, a
Ordem dos Pastores Batistas do Brasil deliberou que pastoras podiam filiar-se à
Ordem, mas que, em cada Secção Estadual os pastores filiados decidiriam sobre a
aceitação ou não de pastoras (CINTRA, 2015). A mesma discussão ocorre nas
igrejas históricas, pentecostais e neopentecostais. A disputa entre
tradicionais (os que não aceitam pastoras) e igualitários (os que aceitam) está
muito acirrada, tanto no campo bíblico como no ético-social. Teólogos têm se
manifestado sobre o assunto e, como é de praxe, divididos (neste TCC, Culver,
Foh, Lopes e Grudem são contrários; Liefeld e Mickelsen são favoráveis).
Para
os que creem na inspiração divina e inerrância da Bíblia, a última palavra deve
vir dela. O exame das Escrituras, nos textos acerca deste assunto, e a
consequente teologia derivada devem levar os cristãos a um posicionamento sobre
a possibilidade ou não deste tipo de ministério pastoral. Este Trabalho de
Conclusão de Curso (TCC) parte do pressuposto de que toda a Bíblia é inspirada
por Deus, que a Escritura deve interpretar a Escritura, sempre com o uso da
razão e que o apóstolo Paulo é o autor das treze cartas que levam seu nome no
Novo Testamento.
Na
Bíblia, o apóstolo Paulo é o escritor que mais se manifesta sobre o assunto.
Pelo volume de sua escrita e pelo conteúdo teológico que provem de sua pena,
Paulo é o escritor bíblico mais citado, tanto a favor quanto contra o
ministério feminino. Por este motivo, este TCC tem como escopo estudar o
pensamento paulino acerca do assunto. Num primeiro momento, se trabalhará as
interpretações e análises de importantes textos paulinos sobre o assunto e, num
segundo momento, uma proposta de teologia paulina acerca da possibilidade do
ministério pastoral feminino.
2 TEXTOS
PAULINOS RELEVANTES SOBRE O MINISTÉRIO PASTORAL FEMININO
O
apóstolo Paulo é o grande formulador teológico do Novo Testamento. Numa visão
tradicional, ele escreveu treze cartas. Através destes escritos, é possível
entender muito do pensamento cristão, pois encontramos neles a base da fé. No
entanto, Paulo não escreveu tratados de teologia. Ele simplesmente escreveu a
igrejas e pessoas tão somente para orientar acerca de problemas que eles
estavam enfrentando. Ele constrói sua teologia a partir de problemas práticos e
dá respostas a estes problemas em seu tempo e sua época, mas também formula,
além da doutrina, princípios teológicos que valerão para todo tempo e época.
Em
relação ao assunto ministério pastoral feminino, o apóstolo Paulo formula
princípios gerais e universais que nivelam homem e mulher na nova ordem de
salvação criada por Jesus e vivenciada na Igreja; nesta nova ordem, todos os
dons são dados pelo Espírito Santo a todos os crentes, independente do gênero.
Em alguns assuntos, ele teve que adaptar estes princípios às condições
culturais de sua época. Três destes assuntos são: a monogamia/poligamia, a
escravidão e a liderança pastoral feminina na igreja. Neste sentido, Paulo tanto
reafirmou a prática cultural de sua época quanto deu margem para uma mudança de
postura em virtude de mudança de cultura, rumo aos princípios gerais e
universais expostos em outros textos.
Há
três textos relevantes sobre assunto que convém analisar: Gálatas 3.26-29, I
Coríntios 11-14 e I Timóteo 2.8-15. Outros textos paulinos serão mencionados,
mas estes três constituem a base para uma definição acerca do assunto.
2.1
GÁLATAS 3.26-29
A
carta aos gálatas foi escrita com o propósito de ensinar que a salvação é
exclusivamente pela fé em Jesus Cristo. Pregadores judaizantes estavam
ensinando que, além da fé em Jesus, era necessária também a obediência da lei
de Moisés, inclusive com o rito da circuncisão. A defesa de Paulo do seu
evangelho é vigorosa. No capítulo 3, ele diz que a promessa foi dada a Abraão
porque ele creu em Deus (v. 6) e os que são da fé em Jesus, esses são filhos de
Abraão (v. 7). Isto só tornou-se possível porque Cristo nos resgatou da
maldição da lei ao morrer no madeiro, conforme determinação da lei (v. 13,14).
Pela fé, os gentios recebem a Cristo e a promessa do Espírito. A lei foi dada
por Deus para servir como um aio, tutor, até que a vinda de Jesus pudesse levar
os homens a crer nele. Neste contexto, ele desenvolve o texto de 3.26-29.
Nos
v. 26,27, ele diz: “pois todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus.
Porque todos quantos fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo”
(Versão Revisada, Imprensa Bíblica Brasileira, em todo o trabalho). Através da
fé, todos são filhos de Deus. A palavra “todos” não deixa dúvida de que
qualquer pessoa, independente de qualquer condição humana, pode ser salva e
desfrutar deste privilégio. O batismo é o sinal desta nova situação e indica
que todos vestiram-se de Cristo, ou seja, são novas criaturas modeladas segundo
seu Senhor. A fé em Cristo produziu um novo modo de ser e viver, embora
continuem vivendo na velha era. A doutrina da salvação pela fé não ficava
restrita ao campo doutrinário, metafísico, mas passava a fazer parte da vida
prática, do dia a dia, pois “se alguém está em Cristo, nova criatura é” (II
Coríntios 5.17).
No
v. 28, há a declaração de Paulo dizendo que: “não há judeu nem grego; não há
escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo
Jesus”. O apóstolo coloca alguns pares divididos por raça, meio social e
natureza. O primeiro par lembra a divisão racial que existiu em toda a história
do povo de Israel de se considerar o “povo eleito” e, desta forma,
diferenciar-se de todos os outros povos. Na fé em Cristo, não existe mais raça (nacionalidade)
escolhida. O segundo par é formado pelas normas da sociedade: escravos e
livres. Esta divisão social nada significa na fé. Para a época, esta é uma
ideia revolucionária já que a prática da escravidão estava enraizada em todo o
mundo antigo. O terceiro par vem da natureza: “macho” e “fêmea”, palavras que
se caracterizam por definir a sexualidade de cada indivíduo humano. Homens e
mulheres ocupam o mesmo patamar na presença de Cristo. Não há mudança humana e
externa na vida destas pessoas: o homem continua sendo homem, igualmente a
mulher, o escravo continua sendo escravo. Tudo continua sendo absolutamente
igual na sociedade. Isto faz parte da teologia paradoxal de Paulo do “já” e do
“ainda não” em relação à salvação operada por Cristo que se manifestava numa
era atual e na era vindoura simultaneamente. Mas, no que envolve a fé em
Cristo, e isto abarca a Igreja, todas estas distinções humanas se desfazem e
estas pessoas são totalmente niveladas em Cristo. Todas elas tornam-se um em
Cristo. Ou seja, não apenas são niveladas como também são unidas a ponto de
serem um só povo na pessoa de Cristo. A unidade da humanidade é conseguida e
vivenciada em Cristo.
Ainda
em relação ao v. 28, Lopes (2015, p. 5-7) não vê neste texto a abolição da
subordinação feminina e de igualdade de funções no ministério pastoral.
Argumenta com quatro objeções à utilização deste texto para o ministério
pastoral feminino. A primeira objeção diz respeito ao objetivo do texto que é
tratar da nossa posição diante de Deus quando cremos em Cristo e não das
funções que homens e mulheres desempenham na Igreja. A segunda é que Paulo
enraíza a subordinação feminina, não na queda, mas na própria criação. A
terceira objeção diz respeito à palavra “um” no texto que significa unidade de
todos em Cristo e não igualdade de funções. A quarta objeção é que Cristo não
aboliu, na presente era, os efeitos do pecado e os castigos quando pecaram. A
primeira e a terceira objeções são textuais. De fato, o texto fala da nossa
posição em Cristo que nos foi dada mediante nossa fé nele. A questão é se esta
nova posição não traz implicações de caráter prático para a relação
homem-mulher. Se, em Cristo, não há homem nem mulher, será que, em Cristo, a
mulher permanece subordinada ao homem? Será que, em Cristo, o escravo permanece
subordinado ao livre? Ou o grego ao judeu? Paulo está lançando um princípio
novo decorrente da posição que os crentes têm em Cristo, qual seja, esta nova
posição acabou com as diferenças e os igualou. A aplicação disto nas diversas
sociedades se dará conforme as culturas de cada uma delas, mas o princípio está
dado e afetará a questão do ministério pastoral feminino nas culturas onde isto
couber. Em relação à unidade, segue-se o mesmo pensamento, pois não pode haver
unidade com subordinação entre as pessoas envolvidas. A segunda e a quarta
objeções não são textuais. A ideia de que a subordinação da mulher ao homem
começou no Éden ou na queda é muito discutida na teologia e não há pensamento
único acerca deste assunto entre os teólogos que creem na inspiração das
Escrituras. Se, de fato, Cristo não aboliu, na presente era, os efeitos do
pecado, também é certo que ele iniciou uma nova era cujos propósitos podem,
dentro das possibilidades culturais, ser vividos nesta era presente. Se a
cultura permite à Igreja vivenciar na prática o “nem homem nem mulher em
Cristo” nesta era, por que não se viveria?
No
v. 29, se as pessoas são de Cristo, logo são a semente prometida por Deus a
Abraão e herdeiros de todas as bênçãos desta promessa. Não há diferenciação
nestes privilégios entre uns e outros, entre homens e mulheres.
O
texto de Gálatas 3.26-29, por ser doutrinário e trazer princípios relativos à
salvação em Jesus Cristo é um texto que deve governar outros textos que
indiquem aparentes contradições com este ou demonstrem fatos locais e culturais,
pois
esta é uma passagem
crucial que tende a citar como a que governa a interpretação de todos os demais
textos relevantes, ou ao contrário, a ser minimizada quanto às suas implicações.
[...] Gálatas 3:28 deve ser visto como um contraste com o status inferior
geralmente dado às mulheres nos dias de Paulo. É uma afirmação dramática que
não deve ser desprezada, nem diluída com o objetivo de manter uma posição
restritiva. Gálatas 3.28 aplica-se a relacionamentos sociais dentro da igreja,
e não meramente ao âmbito espiritual da soteriologia. Ao mesmo tempo, não
significa que todas as distinções estão eliminadas. Nem uma declaração positiva
como Gálatas 3.28, nem uma restritiva, como I Timóteo 2.12, devem ser consideradas
à parte da revelação bíblica total sobre o assunto (LIEFELD, 1996, p. 166,168).
Mickelsen (1996, p. 250), seguindo
nesta mesma linha de pensamento, escreve que
o erudito do Novo
Testamento, F. F. Bruce declarou em seu comentário de Gálatas 3.28: “Paulo
estabelece aqui o princípio básico: se as restrições sobre esta questão se
encontrarem noutras passagens das cartas paulinas(...), essas terão de ser
entendidas em relação a Gálatas 3.28, e não vice-versa”.
2.2
I CORÍNTIOS 11-14
Os
capítulos 11-14 de I Coríntios tratam de questões relativas ao culto cristão.
Visto que havia problemas em relação a alguns aspectos, Paulo escreve no
sentido de orientar a igreja. Em 11.2-16, ele trata da questão do uso do véu
por parte das mulheres no culto público. Em 11.17-34, da celebração da Ceia do
Senhor. No capítulo 12, ele fala dos dons espirituais. I Coríntios 13 é o
grande capítulo sobre o amor. Em 14.1-25, ele discute acerca do dom de línguas
e profecias no culto. E, finalmente, em 14.26-40 acerca da ordem e decência no
culto cristão. Há dois textos que falam mais acerca da posição da mulher na
igreja: 11.2-16 e 14.26-40.
O
contexto cultural que permite entender este texto é o seguinte: as mulheres não
participavam nos cultos das sinagogas, ao passo que elas tinham grande
atividade nos cultos pagãos, mas geralmente associadas a rituais de
prostituição cultual. No culto cristão, a mulher tinha parte ativa, tanto
quanto o homem e as congregações eram mistas. Em público, a mulher devia usar
um véu, em respeito a seu marido e à cultura da época. Há um cuidado social de
Paulo para com a figura da mulher, mas
o trecho relativo a 1
Cor 11,2-11 levanta algumas situações complexas concernentes à situação de
Paulo envolvendo a disputa por autoridade. O velamento das mulheres, contudo,
não foi somente uma questão de falta de decoro ou oriunda dos fatos de alguns
membros da comunidade de Corinto se sentirem constrangidos pela atuação das
mulheres, mas o próprio ato de profetizar era visto como uma experiência direta
com o divino, o que concedia autoridade a quem o fizesse (SILVA, 2013, p. 16).
No
texto de 11.2-16, Paulo começa dizendo que os louva porque eles mantêm as
tradições conforme ele as deu. Convém lembrar que, naquele momento, eles não
tinham ainda o Novo Testamento, que estava em formação. O ensino das tradições
abarcava os costumes éticos e sociais advindas do próprio Evangelho. No v. 3,
ele diz: “quero, porém, que saibais que Cristo é a cabeça de todo homem, o
homem a cabeça da mulher e Deus a cabeça de Cristo”. A palavra “kephale, καφαλη” cabeça
é interpretada em dois sentidos: a de “autoridade, liderança” ou como “fonte”. Liefeld
(1996, p. 161), acerca destes dois sentidos possíveis diz que
os tradicionalistas tendem
a presumir que cabeça sempre quer dizer “governo” ou “autoridade”, e
interpretam Efésios 5.22-23, a respeito de esposas e maridos e 1 Coríntios
11.2-16, a respeito da cobertura da cabeça. Outros eruditos têm demonstrado que
cabeça é termo empregado para significar “fonte”. Embora os eruditos estejam
tratando das mesmas evidências, a diferença na seleção e avaliação delas
levam-nos a soluções fortemente conflitantes. Um estudo que selecionou certo
número de usos da palavra “cabeça”, em sentido figurado, num total de 2.000
ocorrências, de início pareceu apoiar os significados de “governo” e “chefia”,
mas a metodologia usada tem sido fortemente criticada. [...] No contexto mais
amplo de Efésios kephalf significa
tanto “governo” (1.22) como “fonte” (1.15-16).
Mesmo que o significado de “cabeça”
seja a de autoridade deve-se notar que ela é funcional, pois Deus sendo o
cabeça de Cristo não indica superioridade ontológica. Ainda sobre o significado
do termo “cabeça”, Mickelsen (1996, p. 235) afirma que
o dicionário mais
abrangente da língua grega daquele período de que dispomos hoje, em inglês, é o
compilado por Liddell, Scott, Jones e McKenzie, cobre a língua grega clássica e
o coiné (Koiné), de 1.000 a.C. até
cerca de 600 d.C. – portanto, um período de quase mil e seiscentos anos, incluindo
a Septuaginta (tradução grega do Antigo Testamento). O dicionário relaciona
cerca de vinte e cinco possíveis significados figurados para kephale (“cabeça”) os quais eram usados
na literatura grega antiga. Entre estes significados estão: “topo”, “beirada”,
“ápice”, “origem”, “fonte”, “boca”, “ponto inicial”, “coroa”, “término”,
“consumação”, “soma” e “total”. Essa lista não
inclui nosso emprego comum em inglês com o sentido de “que tem autoridade
sobre”, “líder”, “diretor”, “graduação superior” e outros sentidos semelhantes.
(grifo do autor).
Nos
v. 4-6, Paulo recomenda que todo homem que orar ou profetizar, que o faça com a
cabeça descoberta, caso contrário envergonharia a si próprio. Este é um costume
cultural da época. Acerca das mulheres, Paulo diz que toda mulher que ora ou
profetiza com a cabeça descoberta desonra a si própria, pois
nos dias de Paulo,
mulher sem véu, com cabelos soltos ou curtos, era considerada infame. O uso do
véu perpassava várias culturas, entre elas a judaica e a greco-romana, que
dominavam o ambiente à época. Por isto, as honradas deviam ter o cabelo longo,
preso e bem penteado. O cabelo solto era visto como um estímulo erótico, por
isso, usá-lo solto em público era um ultraje ao pudor, pois era considerada uma
parte privada do corpo, que só o esposo podia olhar [...] é provável que as
mulheres-profetas achassem que podiam desempenhar seu papel na liturgia com a
cabeça descoberta, pois a casa, lugar onde também se celebrava o culto cristão,
não era um lugar público (FOULKES apud
MATOS, 2004, p. 91-92).
Observe-se que as mulheres tinham a
liberdade de orar e profetizar no culto cristão (v. 5), mas que deveriam
fazê-los conforme os costumes sociais de sua época. No v. 7, Paulo diz: “pois o
homem, na verdade, não deve cobrir a cabeça, pois é a imagem e glória de Deus,
mas a mulher é a glória do homem”. É uma obrigação do ser humano não misturar
os papéis culturais de homem/mulher. Não deve haver nem confusão nem mudança.
Paulo enxerga nesta atitude da cultura de cobrir ou não a cabeça uma forma boa
e correta de expressar uma verdade bíblica da criação: Deus criou o homem e
deste formou a mulher. É esta verdade que ele enfatiza nos v. 8-10. Paulo
considera correta a atitude cultural na qual a mulher demonstra “submissão”
tanto a seu marido como aos homens em geral ao adotar o sistema de divisão
masculino/feminino dentro da sociedade patriarcal na qual viviam. No entanto,
esta “submissão” não impede que a mulher ore e profetize no culto público, que
são sinais de autoridade.
Nos
v. 2-10, Paulo está falando da necessidade de se seguir os costumes culturais
para que não haja vergonha no culto cristão. Mas, nos v. 11 e 12, ele dá uma
guinada no texto: “todavia, no Senhor, nem a mulher é independente do homem,
nem o homem independente da mulher, pois assim como a mulher veio do homem, assim
também o homem nasce da mulher, mas tudo vem de Deus”. Paulo estava falando da
cultura, mas agora ele começa dizendo: “todavia, no Senhor”, o que indica que
ele fala da nova ordem criada em Cristo liberta das amarras culturais de cada
povo. Nesta nova ordem, homens e mulheres são iguais: um não vive sem o outro;
homem e mulher se complementam e por isso devem viver juntos em unidade. Na
criação, a mulher é tirada para fora do homem, mas no nascimento, o homem é
tirado para fora da mulher. Isto restabelece o equilíbrio e a unidade. Então
ele diz: “mas tudo vem de Deus”. Tanto o homem como a mulher foram criados com
sexualidades diferentes por desejo do próprio Deus e esta convivência de
interdependência e igualdade é o desejo e a proposta dele para a Igreja.
Nos
v. 13-16, Paulo volta ao dia-a-dia e diz que há costumes na sociedade dos
coríntios acerca do que é decoroso e honroso na relação homem/mulher e que a
igreja cristã deve se submeter a fim de não prejudicar a sua boa presença na
comunidade. O princípio que Paulo segue está bem explicitado em I Coríntios
10.32-33: “não vos torneis causa de tropeço nem a judeus, nem a gregos, nem a
igreja de Deus; assim como também eu em tudo procuro agradar a todos, não
buscando o meu próprio proveito, mas o de muitos, para que sejam salvos”.
Há
algumas conclusões acerca do texto do “véu das mulheres” (I Coríntios 11.2-16).
A primeira é que existe uma forma de relacionamento homem/mulher ditada pela
sociedade em que cada igreja cristã se encontra. Esta forma de relacionamento
define os papéis culturais de masculino e feminino dentro da sociedade. O
objetivo da sociedade e, convergentemente, de Paulo, é que estes papéis não se
misturem, mas continuem distintos. Onde estes papéis são deliberadamente
afrontados não pode haver oração, profecia ou mesmo culto público que transmita
a mensagem do evangelho para a sociedade. Daí a ordem paulina de cobertura para
a mulher no culto e da não cobertura para o homem. A segunda conclusão é que,
paradoxalmente, no Senhor, sem os costumes específicos das sociedades, o
relacionamento homem/mulher é de igualdade e complementariedade. As mulheres
podem orar e profetizar da mesma forma que os homens e têm parte ativa nos
cultos tanto quanto os homens. Eles são iguais na criação e na redenção. Esta é
a nova sociedade que Deus está formando.
No
capítulo 12, Paulo fala a respeito dos dons espirituais. Dentre os vários
ensinos que o apóstolo dá, destaca-se o v. 11: “mas um só e o mesmo Espírito
opera todas estas coisas distribuindo particularmente a cada um como quer”. Ou
seja, na distribuição dos dons, o Espírito é quem decide que dom dará a cada
um. A decisão é dele e não humana. Não há, no texto, nenhuma menção de que ele
restrinja dons devido ao sexo da pessoa. Paulo cita o dom de profecia (v. 10) e
já havia dito que mulheres profetizavam (11.5). No v. 25, ele diz que a divisão
dos dons é “para que não haja divisão no corpo, mas que os membros tenham igual
cuidado uns dos outros”. A igreja era composta de homens e mulheres. O que ele
quer dizer com “igual cuidado uns dos outros”? Não pensava ele numa igreja de
iguais ao invés de uma igreja hierarquizada onde a mulher sempre ocupa um lugar
subalterno? O v. 27 diz: “ora, vós sois o corpo de Cristo, e individualmente
seus membros”. Na visão paulina, a igualdade entre homens e mulheres na igreja
é superior a qualquer hierarquização trazida pelos costumes sociais.
No
capítulo 13, Paulo exalta o amor como a atitude principal que deve caracterizar
a igreja e o indivíduo cristão. Falando acerca da relação entre os dons e o
amor, ele diz: “e ainda que eu tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os
mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que
transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria” (13.2). Pode-se ter
qualquer dom, inclusive o pastoral, mas sem amor, ele nada vale. Falando acerca
das características do amor, Paulo diz no v. 5: “não se porta
inconvenientemente, não busca os seus próprios interesses”. A ideia é que a
pessoa que ama não envergonha os outros. Era uma questão de amor que as
mulheres de Corinto não envergonhassem socialmente os homens, cultuando com a
cabeça descoberta. Mas, era igualmente importante, que os homens amassem as
mulheres de sua comunidade, não buscando apenas os interesses masculinos, mas
também os delas.
No
capítulo 14.1-25, Paulo demonstra que o dom de profetizar (trazer uma mensagem
de Deus compreensível e racional) é superior ao dom de línguas (trazer uma
mensagem de Deus de forma incompreensível). Quando fala da profecia, ele diz:
“mas o que profetiza fala aos homens para edificação, exortação e consolação”
(v.3). Profetizar, entre outras coisas, era uma forma de ensino. Nos v. 23,24,
ele diz: “se, pois, toda a igreja se
reunir num mesmo lugar, e todos
falarem em línguas, e entrarem indoutos e incrédulos, não dirão porventura que
estais loucos? Mas se todos profetizarem,
e algum incrédulo ou indouto entrar, por
todos é convencido e por todos é
julgado” (grifo nosso). Observa-se que toda a igreja pode profetizar, o que
inclui homens e mulheres.
No
texto de 14.2-40, Paulo orienta como deve ser um culto público. Há vários
princípios elencados: o culto deve ser variado e com a participação de todos;
tudo deve ser feito para edificação; deve ser dinâmico e com ordem e decência.
Os v. 33b a 35 parecem restringir às mulheres o direito de falar e ensinar na
igreja:
como em todas as
igrejas dos santos, as mulheres estejam caladas nas igrejas; porque não lhes é
permitido falar; mas estejam submissas como também ordena a lei. E, se querem
aprender alguma coisa, perguntem em casa a seus próprios maridos; porque é
indecoroso para a mulher o falar na igreja.
Há três ordens nestes versículos,
todas dirigidas às mulheres: “silenciai”, “subordinem-se” (voz reflexiva) e
“perguntai”. Numa primeira leitura, Paulo ordena que, nos cultos públicos, a
mulher fique em silêncio e não fale nada. O aprendizado delas, quando houvesse
dúvidas, seria feita em casa perguntando a seus maridos. Como interpretar este
texto, se nos textos anteriores de I Coríntios 11-14, ele deu liberdade às
mulheres de orar e profetizar em público e de participar ativamente no culto?
Segundo Mickelsen (1996, 242-243),
há pelo menos duas
possibilidades. É possível que Paulo esteja dizendo às esposas que parem de
interromper o culto ao fazer perguntas a seus maridos, querendo saber o
significado de tudo. Antes, deveriam perguntar-lhes em casa. Talvez Paulo
estivesse fazendo menção a ensinos falsos dos judaizantes, que desejavam que as
mulheres ficassem em silêncio na igreja, como tinham de ficar na sinagoga.
[...] Usualmente, quando Paulo fala “da lei”, refere-se ao Antigo Testamento.
Todavia, não existe uma passagem no Antigo Testamento que digam que as mulheres
devem estar subordinadas ou que não podem falar em público. Então a que lei se
refere esta passagem? Pode se referir a uma das numerosas leis locais, que
proibia às mulheres falar em reuniões públicas. Ou pode referir-se à
interpretação rabínica do Antigo Testamento. Se esta passagem for uma citação
dos judaizantes, é provável que se refira a uma interpretação rabínica. Há
outras possibilidades, ainda, mas ninguém pode dogmatizar com autoridade, sobre
o sentido exato desses versículos, porque não conhecemos a situação
sociocultural exata. Paulo o sabia, os coríntios o sabiam. Nós não o sabemos.
[...] Visto que esses dois versículos parecem contradizer o que Paulo dissera
anteriormente nesta carta, bem como o próprio costume de Paulo, concernente a
Priscila e suas outras “colaboradoras” (“meus cooperadores em Cristo Jesus”),
não ousamos usá-los com o objetivo de anular tudo o mais que Paulo escreveu e
praticou.
Outra estudiosa, Foh (1996, p.
101-102) assim se exprime sobre este texto:
o verbo usado junto
com “silêncio” nesta passagem tem a conotação de ausência de fala. Então seria
absoluto o silencio exigido das mulheres? Se isso for verdade, as mulheres não
poderiam cantar, participar de jograis, de leituras responsivas, orar em voz alta,
nem mesmo pronunciar a oração dominical. Se assim for, tudo quanto foi dito
antes, que envolve falar em línguas, profetizar e compartilhar verbalmente na
igreja, não diz respeito à mulher e deveria ter um carimbo: “só para homens”. A
expressão “vós todos” de 14.5 deveria excluir as mulheres. [...] Além disso,
Paulo emprega o termo “conservem-se as mulheres caladas” em 1 Coríntios 14, mas
não sugere um silêncio absoluto, pois o contexto define que tipo de silêncio o
apóstolo tem em vista. “Mas, não havendo intérprete, fique calado na igreja,
falando consigo mesmo e com Deus” (1 Co 14.28), e, “se, porém, vier revelação a
outrem que esteja assentado, cale-se o primeiro” (1 Co 14:30). Em nenhum dos
casos, presume-se que o silêncio deva ser absoluto; a pessoa que tiver o dom de
falar em línguas pode certamente participar de cânticos, de orações e assim por
diante, ainda que esse crente não possa falar em línguas sem que haja
intérprete. [...] O apelo de Paulo à lei em geral é sentido como um golpe
tremendo para manter as mulheres sob controle. Mas há outra maneira de ver a
questão. A lei pode ser vista como um limite. A mulher não precisa submeter-se
naquilo que a lei não exige; a mulher só deve submeter-se segundo as exigências
da lei. O Antigo Testamento permitia que a mulher profetizasse; portanto, 1 Co
14.34 não proíbe às mulheres o dom de profetizar. O que a lei exige é a
submissão, e não o silêncio. O mandamento no v. 34 pode ser traduzido assim:
“mas devem submeter-se”. “Esteja subordinada” ou “fique sujeita” são formas
passivas que ressoam uma nota de servilismo. Mas o verbo grego é reflexivo.
Trata-se de um ato que a própria pessoa executa por si mesma, ou de si mesma. A
mulher, sendo ontologicamente igual ao homem, de vontade própria submete-se em
reconhecimento de sua posição de mulher. O v. 35 também define o sentido de
silêncio, ou de deixar de falar, que Paulo tem em mente. Falar seria entendido
então como fazer perguntas. O diálogo, com perguntas e respostas, era a forma
comum de estudo acadêmico do primeiro século. Não se permitia à mulher que
levantasse perguntas em diálogo, porque esta era uma forma de ensino.
Como
visto acima, estudiosos divergem sobre a interpretação do texto, mas não
afirmam que o silêncio da mulher é absoluto, como parece ser a orientação do
texto à primeira vista. Culver, que advoga a ideia conservadora de que a mulher
deve permanecer em silêncio na igreja, interpreta este texto assim: “parece que
a ideia é no que concerne ao ato de ensino
público na igreja, as mulheres deveriam estar em silêncio” (1996, p. 38)
(grifo do autor). Outra observação é que o “silêncio” da mulher sempre é
acompanhado de explicações possíveis sobre o que acontecia na época em que o
texto foi escrito, quer seja intérprete conservador, quer seja igualitário.
Outro
problema na interpretação destes textos é se o culto e sua liturgia no primeiro
século eram exatamente iguais aos cultos atuais com uma liderança e liturgias
formais. Ridderbos (2014, p. 534), um teólogo perito em Paulo, afirma acerca
dos cultos públicos:
agora, no que ser
refere a estas reuniões da Igreja, de forma alguma é o caso que em Paulo
tenhamos recebido informações detalhadas ou prescrições. Nas epístolas que
foram preservadas e chegaram até nós, ele fala dessas reuniões incidentalmente,
na maioria das vezes, com relação a certos abusos e pressupondo muitas coisas
que, com frequência, não ficam claras para nós e sobre as quais gostaríamos de
saber mais. Assim, desde o início, é difícil, tomando por base as epístolas
paulinas, determinar se e até que ponto estas reuniões estavam sob a orientação
específica de pessoas designadas para este propósito. Esta questão está,
obviamente, ligada de maneira muito próxima àquela da presença de pessoas com
cargos na Igreja de um modo geral. Tomando-se como ponto de partida uma
passagem como 1 Coríntios 11.17ss, há muito pouco que deixe evidente uma ordem
fixa; antes parece haver uma escassez de liderança. O mesmo aplica-se a 1
Coríntios 14, onde Paulo vê-se obrigado a colocar claramente para a Igreja que
Deus não é, afinal de contas, Deus de confusão (v. 33). Por outro lado, tudo
isso certamente não é prova de que nas reuniões da igreja não havia,
geralmente, uma liderança [...] Com tudo isso, podemos considerar que muito
mais coisas foram pressupostas do que aquilo que é expressado com todas as
letras. No entanto, fica evidente pela maneira como, também a esse respeito,
Paulo dirige-se continuamente à Igreja e não a uns poucos que ocupam posições
de liderança ou cargos, o quanto os encontros da Igreja não são uma reunião
hierárquica, ou oferecidos por umas poucas pessoas “santas”, mas têm um caráter
plenamente congregacional.
Nas discussões atuais sobre os textos
paulinos, há uma tendência de transportar a hierarquia e liturgia dos cultos
atuais para interpretar os cultos do I século. Aqueles eram cultos bastante
informais, realizados nas casas de pessoas da comunidade, e contando com a
participação de muitos como se infere de I Coríntios 14.26. Os cultos tinham a
participação ativa de mulheres (I Co 11.5).
2.3
I TIMÓTEO 2.8-15
Outro
texto bastante controvertido sobre o assunto é I Timóteo 2.8-15. A primeira
carta de Paulo a Timóteo tem como objetivo orientar o jovem pastor na sua
tarefa de organizar a igreja. Uma das razões de preocupação de Paulo era em
relação aos falsos ensinos que grassavam em Éfeso nesta época: “como te roguei,
quando partia para a Macedônia, que ficasse em Éfeso, para advertires a alguns
que não ensinassem doutrina diversa” (1.3). Éfeso era uma cidade caracterizada
pelo templo à deusa Diana (Ártemis) e onde Paulo passou por grande perigo de
vida ao pregar o evangelho (Atos 19.23-41). A adoração desta deusa envolvia a
prostituição cultual.
É
neste ambiente de heresias e promiscuidade que temos de entender o texto de I
Timóteo 2.8-15. No v. 8, Paulo demonstra seu desejo de que os homens em todo
lugar levantem mãos santas, sem ira e nem contenda. O que caracteriza o homem
cristão não é a dominação, mas a plena vivência de uma santidade prática que
busca Deus e sua vontade e não discussões humanas carregadas de ira. “A
preocupação de Paulo para com homens e mulheres não se focaliza nos aspectos
externos, mas na condição do coração que causa os sinais externos” (FOH, 1996,
p. 96).
Dos
versos 9-15, o apóstolo fala às mulheres. No v. 9, ele começa com a expressão
“do mesmo modo”. Isto significa que o objetivo do ensino que foi dado ao homem,
agora é dada à mulher: uma vida de santidade prática. Nos v. 9 e 10, ele faz um
contraste entre a exterioridade e a interioridade da mulher:
quero, do mesmo modo,
que as mulheres se ataviem com traje decoroso, com modéstia e sobriedade, não
com tranças ou com ouro, ou pérolas ou vestidos custosos, mas (como convém a mulheres
que fazem profissão de servir a Deus) com boas obras.
Os cabelos trançados, ouro, pérolas e
roupas caras faziam parte tanto das mulheres da alta sociedade como também das
prostitutas, inclusive as cultuais. Mickelsen (1996, p. 246) fala deste contexto:
a maior parte das
mulheres gregas casadas usava uma catastola,
um roupão que descia até os pés, preso por um cinto. Um traje muito modesto. A respeito de quem Paulo
estava escrevendo? Aqui devemos levar em consideração o contexto histórico e
cultural, bem como o contexto literário. Em Éfeso, com seu templo enorme erguido
à deusa Artemis, havia centenas de sacerdotisas sagradas que provavelmente
também serviam como prostitutas cultuais. Também havia centenas de hetaerae, mulheres gregas mais educadas,
acompanhantes regulares e com frequência parceiras sexuais extramaritais de
homens gregos das classes superiores. É possível que algumas dessas mulheres se
tenham convertido e estivessem usando suas roupas caras, indecorosas na igreja.
Visto que as hetaerae com frequência
eram professoras respeitáveis de homens na Grécia (muitas delas são mencionadas
na literatura grega), com toda probabilidade estavam tornando-se professoras
depois de ingressar na igreja. Aparentemente, a falta de castidade e modéstia era
um problema real entre algumas mulheres da igreja de Éfeso, pois Paulo menciona
duas vezes nesta seção (I Tm 2.9,15) ser necessária a castidade (no grego, sophrosyne).
O pedido de Paulo é as mulheres
cristãs sejam diferentes delas. Em primeiro lugar, não dando tanto valor ao que
é externo embora declare que as suas vestimentas devem ser bem arrumadas e
caracterizadas pelo decoro social e autocontrole. Este comportamento acerca do
vestuário é conveniente para mulheres piedosas (tementes a Deus). Mas, acima de
tudo, o que deve caracterizá-las socialmente é a prática de todo tipo de boas
obras. A preocupação delas deve ser fazer o bem às pessoas.
Neste
contexto, poderia ocorrer que as mulheres assumissem a liderança e o ensino da
igreja cristã. Preocupado com o sistema de sua época, que é patriarcal, Paulo
continua sua orientação no v. 11: “a mulher aprenda em silêncio com toda a
submissão”. Aqui há um aspecto positivo e um problema de tradução. O aspecto
positivo é que a mulher cristã pode “aprender”. O que era negado em outras
religiões da época, onde as mulheres eram usadas como objetos ou completamente
ignoradas, no cristianismo valoriza-se a mulher como pessoa que pode aprender e
crescer intelectualmente. Aprender não é só para os homens, é para todos. O
problema de tradução encontra-se na palavra traduzida como “silêncio”. No texto
grego, “esukia” pode significar
“silêncio”, mas o melhor sentido é “tranquilidade, calma”: “a palavra expressa
a tranquilidade em geral” (RIENECKER; ROGERS, 1985, p. 460). A mulher deveria
aprender, não em silêncio, mas com tranquilidade, ou seja, com toda a
submissão. Não cabia a ela, pelo seu comportamento, usar a igreja para fazer a
mudança de sua sociedade patriarcal. Até porque Paulo sabia que este
comportamento traria enorme prejuízo para a igreja na sua tarefa de evangelizar
o mundo de então.
Continuando
em sua orientação, Paulo vai fazer duas restrições às mulheres no v. 12: “pois
não permito que a mulher ensine, nem tenha domínio sobre o homem, mas que
esteja em silêncio”. A primeira restrição é que ele não permitia que a mulher
ensinasse. A segunda restrição é que a mulher não poderia dominar homem. O
verbo normal da língua grega para exercer autoridade é “exousiazo”. Aqui Paulo não usa esta palavra, mas usa o verbo “authenteo”. Este verbo é usado somente
aqui em todo o Novo Testamento. É traduzido como “exercer autoridade, dominar,
ser um autocrata, ser dominador” (RIENECKER; ROGERS, 1985, p. 460).
“Essencialmente, authentein significa
‘atirar-se’ e em geral tem um sentido negativo [...] outro conceito primitivo
era ‘originar’ algo ou ‘ser responsável’ por alguma coisa” (MICKELSEN, 1996, P.
247). Por que Paulo usa uma palavra tão diferente ao invés de usar a palavra
comum para o exercício da autoridade? O restante da frase, ao invés de “mas que
esteja em silêncio” poderia ser “mas ser (viver) em tranquilidade”, pois
trata-se da mesma palavra “esukia” do
versículo anterior. As duas restrições: não ensinar e não comandar homens são
típicas de sua sociedade.
Para
dar base escriturística para estas duas restrições impostas à mulher, o
apóstolo cita o exemplo de Adão e Eva. Os v. 13-14 dizem assim: “porque
primeiro foi formado Adão, depois Eva. E Adão não foi enganado, mas a mulher,
sendo enganada, caiu em transgressão”. As razões para que a mulher não ensine e
nem domine sobre homens vem de dois exemplos históricos: 1º) Adão foi formado
primeiro e depois Eva, que veio dele; 2º) Adão não foi enganado, mas Eva foi e
bem enganada, tornando-se transgressora das ordens de Deus. Estes exemplos
bastam para justificar que, em sua cultura, a mulher submeta-se ao homem.
Paulo
poderia ter terminado sua argumentação no v. 14 e seu objetivo teria sido
atingido. No entanto, ele escreve o v. 15 com um sentido aparentemente
enigmático: “salvar-se-á, todavia, dando à luz filhos, se permanecer com
sobriedade na fé, no amor e na santificação”. Obviamente, esta salvação do v.
15 não é um ensino geral porque se assim fosse, mulheres que não gerassem filhos
não poderiam ser salvas e, além disso, a salvação seria pelas obras. A salvação
do v. 15 está descrita deste modo para se contrapor aos v. 13 e 14. Em I
Coríntios 11.2-10, quando também falou da submissão social da mulher ao homem,
Paulo “compensou” esta situação da mulher escrevendo os v. 11 e 12, onde dizia
que “no Senhor, nem a mulher é independente do homem, nem o homem independente
da mulher; pois assim como a mulher veio do homem, assim também o homem nasce
da mulher, mas tudo vem de Deus”. Outro exemplo do apóstolo fazendo esta
“compensação” encontra-se em I Coríntios 7.1-6, quando ele fala das relações
sexuais no casamento. No v. 1, ele fala “bom seria que o homem não tocasse em
mulher”, olhando do ponto de vista masculino. Quando se esperava que ele
falaria da dominação masculina também nas relações sexuais, ele escreve o v. 4:
“a mulher não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas sim o marido; e
também da mesma sorte, o marido não tem autoridade sobre o seu próprio corpo,
mas sim a mulher”. Paulo faz o mesmo tipo de “compensação” aqui. O v. 15 é um
contraponto aos v. 13-14. As razões da mulher ser subordinada na sociedade e,
consequentemente, na igreja, tem como primeiro argumento que Eva foi formada de
Adão (v. 13). O contraponto é que a mulher gera filhos, dentre os quais homens.
Eles vêm delas. O segundo argumento é que Eva foi enganada; a resposta no v. 15
é que o engano se desfaz quando a mulher, na salvação de Jesus Cristo,
permanece na fé, no amor e na santificação (todas estas são qualidades
necessárias na salvação) e tudo isto com sobriedade (grego: sofrosyne) que “significa basicamente o
autodomínio nos desejos físicos [...] é aquele autocontrole interior habitual,
com seu domínio constante sobre todas as paixões e desejos” (RIENECKER; ROGERS,
1985, p. 460). Uma mulher que vive a salvação com fé, amor e santificação,
controlando seus desejos e paixões é o exato contrário de uma Eva enganada. O
ensino aqui é que a nova vida em Cristo, a salvação do v. 15, concede à mulher
um lugar reabilitado que havia perdido na queda e pela qual sofre a
consequência de subordinar-se na sociedade. A salvação de Jesus devolve-lhe a
mesma igualdade com o homem e, neste âmbito (a Igreja), não existe mais a
superioridade masculina e nem a subordinação da mulher, pois “em Cristo Jesus,
não há homem nem mulher”.
3 UMA
PROPOSTA TEOLÓGICA PAULINA PARA O MINISTÉRIO PASTORAL FEMININO
3.1
A TEOLOGIA PAULINA DAS DUAS ERAS
A
teologia paulina vê o evento “Cristo”, principalmente sua morte e ressurreição,
como o centro da ação de Deus na história (I Coríntios 15.3,4; 2.2; Romanos
6.4-10; Gálatas 2.20; 4.4-6). Como rabino judeu, Paulo entendia que a época presente
era controlada pelo mal, mas que viria uma época vindoura que começaria com o
Dia do Senhor e na qual Deus instalaria o seu Reino em definitivo na Terra,
vencendo todo o mal. “Saulo, o judeu, participava da esperança judia da vinda
do Messias, de uma forma ou de outra, para destruir seus inimigos, redimir
Israel e estabelecer o Reino de Deus” (LADD, 1985, p. 343). Quando Paulo
converte-se a Jesus no caminho de Damasco (Atos 9.1-19) seu pensamento acerca
das eras presente e vindoura muda, em especial, porque ele passa a crer em
Jesus como o Messias. Logo, a era messiânica já havia iniciado. Segundo Ladd
(1985, p. 343-352), para Paulo, a atual era/século (grego: aion) era caracterizada pelo domínio do pecado e estava em rebelião
contra Deus, sendo dominado pelo seu deus, Satanás (II Coríntios 4.4). Com a
vinda de Jesus, o Messias, seu Reino já estava na Terra e foi trazido ao seu
povo, mesmo que o mundo não o pudesse perceber (Colossenses 1.13). O reinado de
Jesus não começaria na parousia (vinda)
e se estenderia ao telos (fim), mas
começou na sua ressurreição e iria até o telos.
Desta forma, a partir de Jesus Cristo, a era (aion) vindoura entrou na história humana. Embora a era vindoura
ainda esteja por vir, seu poder e suas bênçãos invadiram a presente era das
trevas. Os que creem em Jesus passam a viver em duas eras simultaneamente.
Precisam viver neste mundo, dentro de suas culturas com suas responsabilidades
e, ao mesmo tempo, são a comunidade do Senhor que desfruta da nova vida em
Cristo: “pelo que, se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas
já passaram; eis que tudo se fez novo” (II Coríntios 5.17). Uma nova vida está
aberta aos homens: a existência “em Cristo”.
Ele agora sabia que
Jesus é o Messias, o Filho de Deus, que inaugurou uma nova era, que requeria de
Paulo uma nova atitude diante dos homens. Ele não os via mais como judeus e
gregos, escravos e livres. Tais distinções, embora reais, não mais interessavam.
Todos eles são homens amados por Deus, por quem Cristo morreu, a quem ele tem
que levar as boas novas da novidade da vida em Cristo (1985, p. 351).
Qual então é centro da teologia
paulina?
A teologia de Paulo é
a exposição dos novos fatos redentores; a característica comum, em todas as
suas ideias teológicas é o seu relacionamento com o ato histórico de Deus da
salvação em Cristo. O significado de Cristo é a inauguração de uma nova era de
salvação. Na morte e ressurreição de Cristo, as promessas da salvação
messiânica do Velho Testamento se cumpriram, mas dentro da era antiga. O novo
veio dentro do alicerce do antigo; mas o novo também está destinado a
transformar o antigo. Portanto, a mensagem de Paulo é tanto de uma escatologia
realizada como futurística (1985, p. 352).
A
nova era, ou o Reino de Deus, que Jesus trouxe cria a Igreja como a comunidade
do Reino. A Igreja está inserida nas comunidades da velha era e com elas terá
de conviver. Mas a Igreja, em si, é uma comunidade totalmente diferente porque
ela é escatológica. Ela pertence ao futuro; na verdade, é a comunidade dos
remidos que habitarão o céu: “mas a nossa pátria está nos céus, donde também
aguardamos um Salvador, o Senhor Jesus Cristo” (Filipenses 3.20). É nesta
tensão que a Igreja vive: ela é a comunidade da nova era que Cristo iniciou,
mas, ao mesmo tempo, ela tem que viver na velha era com seus costumes,
tradições e comportamentos derivados tanto da imagem de Deus que ele colocou na
humanidade (Atos 17.25-29) quanto da queda (Romanos 1.28-32).
3.2
A VIVÊNCIA DA IGREJA NAS DUAS ERAS
A
Igreja, esta comunidade em tensão, terá duas tarefas em sua caminhada nesta
terra. A primeira é viver os princípios da nova era que Cristo trouxe com os
valores da ética do Reino de Deus. Um dos princípios é que a principal virtude
ética e existencial que Jesus ensinou e que Paulo salienta é o amor (I
Coríntios 13; Romanos 12.9-10; 13.10; Gálatas 5.6; Efésios 5.2; Filipenses 2.2;
Colossenses 3.14; I Tessalonicenses 3.12; I Timóteo 1.5; Tito 2.2; Filemom 5).
O amor rege todas as demais virtudes, mas este amor é constantemente
qualificado, como em I Coríntios 13.4-7. Existem outros princípios que
pertencem a esta nova era como o de Gálatas 3.28 onde, em Cristo, não há homem,
nem mulher; nem escravo, nem livre; nem judeu, nem grego. Este é um princípio
da nova era de Cristo, do Reino de Deus, e isto é fácil de perceber: no céu (a
consumação plena da nova era de Cristo), nenhuma destas diferenciações fará
sentido, pois “todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo” (Gálatas 3.26).
Cabe à Igreja perseguir estes princípios na sua prática de vida, os quais são
superiores a qualquer cultura que o homem crie.
A
segunda grande tarefa da Igreja consiste em, tendo estes princípios superiores
como objetivos, viver na sua cultura separando o que é bom e o que é mal dentro
dela. Diz Paulo em I Tessalonicenses 5.21-22: “mas ponde tudo à prova. Retende
o que é bom; abstende-vos de toda espécie de mal” e em Filipenses 4.8: “quanto
ao mais, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo que é honesto, tudo que é justo,
tudo que é puro, tudo que é amável, tudo que é de boa fama, se há alguma
virtude, se há algum louvor, nisso pensai”. Estes dois textos, entre outros,
servem para demonstrar que Paulo entendia que há coisas boas e más nas culturas
e competia aos cristãos usar as Escrituras e a razão para discernir e, tanto
aprovar como rejeitar, pois “não vos conformeis a este mundo, mas
transformai-vos pela renovação da vossa mente” (Romanos 12.2).
Um
problema difícil para a Igreja na execução destas duas tarefas é que o
evangelho geralmente chega depois da cultura. As sociedades estão formadas com
seus valores próprios, distantes de Deus e de sua vontade. O evangelho produz
mudanças nos que creem (Efésios 2.11-13; Filipenses 1.5,6; I Tessalonicenses
1.5,6), mas em muitos aspectos, a noção de certo e errado, bem e mal, está
atrelada àquilo que são os costumes de cada sociedade. Assuntos como
alimentação, vestuário, formas de tratamento, diferenciação social, papéis do
homem e da mulher, relacionamento familiar, entre outros, são parte da formação
cultural de cada povo em cada época específica. O homem forma a cultura e é
formado por ela. Assim, muito do que seja bem ou mal para um cristão estará
atrelado ao que a sua sociedade lhe ensinou. Em contato com os princípios da
nova era em Cristo, tensões aparecerão e a Igreja precisa da orientação
inspirada dos escritores da Bíblia. Nem sempre, em toda a cultura, a Igreja
conseguirá viver plenamente os princípios básicos da fé, mas terá de se amoldar
até que a situação permita vivê-los.
A
dificuldade em cumprir as duas tarefas da Igreja (viver os princípios bíblicos
principais e separar, na cultura, o que é bem e mal) pode ser observado em três
assuntos culturais sobre os quais Paulo fala: subordinação da mulher ao homem
na igreja e na sociedade, a monogamia/poligamia e a escravidão. Todos estes
assuntos faziam parte da vida das sociedades greco-romanas e judaicas da época
do apóstolo Paulo.
Acerca
da questão da monogamia/poligamia, Rega (2009, p. 66-70) apresenta o que ele
chama de “situações críticas fronteiriças” (2009, p. 66). São situações cujo
comportamento da sociedade destoa da ética do evangelho e, temporariamente,
aceita-se aquele comportamento, mas tomando ações que visem uma futura mudança.
Ele cita como situações assim, da época de Paulo, a poligamia e a escravidão.
Acerca da poligamia, Rega afirma que
Paulo, por exemplo,
teve que lidar com situações complexas para a cultura da época. Ao tratar da
questão do incesto (I Coríntios 5.1-5), sua resposta foi radical: expulsão do
incestuoso da comunhão da igreja. Em outra ocasião, no entanto, Paulo teve de
encontrar uma alternativa diferente. Foi o caso dos homens que, embora casados,
tinham outra mulher. Essa situação era tolerável na cultura da época, mas esses
homens estavam se convertendo e se integrando às igrejas. [...] No primeiro
caso, Paulo procurou estabelecer uma liderança que servisse de modelo para as
gerações futuras. A situação dos que se convertiam não podia ser imediata e radicalmente
alterada – ainda que de natureza complexa à luz da compreensão matrimonial e
familiar bíblica – sob pena de gerar sérias dificuldades à sobrevivência
familiar. A abordagem de Paulo para esta situação está descrita nos critérios
para a escolha dos presbíteros e diáconos da igreja. Paulo enfatiza que o líder
deveria ser marido de uma só mulher (v. 1 Tm 3.2,12; Tt 1.6).[...] Por que
Paulo teria mencionado este critério ao descrever o perfil para os líderes das
igrejas? Será que a igreja abrigava entre os membros pessoas que praticavam a
poligamia ou que viviam a forma disfarçada de concubinato? Embora não haja
registros de situações como essas, D. A. Carson lembra que a poligamia era
praticada especialmente pela aristocracia, e em algumas províncias. [...] Outra
possibilidade dentro deste raciocínio é que a proposta de Paulo visava formar
uma liderança que seguisse o padrão bíblico de vida, inclusive nas relações
matrimoniais, ou seja, a liderança abandonaria práticas culturais que
conflitassem com padrões bíblicos. Isso quer dizer que os convertidos em estado
matrimonial aceito social e legalmente (poligamia ou concubinato, p. ex.)
poderiam mantê-lo (1 Co 7.17-24), mas não lhes seria permitido ocupar função de
liderança. Com isso podemos deduzir que Paulo possuía um ideal ético a ser
perseguido: monogamia como padrão para o matrimônio. No entanto, havia uma
situação real vivida (ou pelo menos hipotética): a poligamia (real ou
disfarçada em concubinato), que se desejava eliminar, objetivando atingir, mais
tarde, o ideal ético. Paulo levanta uma
liderança modelo para ser seguida pelas gerações futuras. Ou seja,
tolerou-se provisoriamente uma situação enquanto as bases para conquistar o
ideal ético bíblico eram lançadas. (2009, p. 66-70) (grifos do autor).
O texto de Rega demonstra que Paulo
foi capaz de tolerar a possibilidade da poligamia para os novos cristãos devido
à cultura deles, trabalhando para que, no futuro, a monogamia fosse o ideal
matrimonial de todos.
Muitos
autores, quando falam da submissão da mulher ao homem, buscam nos textos da
criação (Gênesis 1 e 2) a razão para que seja assim para sempre. Nestes mesmos
textos, há a ordem de Deus para a monogamia (Gn 2.24). Este sempre foi o ideal
de Deus para o matrimônio. Os homens construíram sociedades onde a poligamia
imperava (basta ler o livro de Gênesis). No entanto, apesar de ter dado seu
ideal no Éden, Deus tolerou este “desrespeito” ao seu padrão, respeitou as
culturas e, ainda por cima, usou para sua revelação homens polígamos, como foi o
caso de Abraão, Jacó, Davi e Salomão, entre outros. É de se destacar que o povo
eleito de Israel foi formado de um homem chamado Jacó que tinha duas esposas e
duas concubinas e, com elas, formou as 12 tribos da nação através da qual Deus
se revelaria ao mundo (Gênesis 35.23-26). Na época de Paulo, havia a poligamia
como algo natural em algumas sociedades e grupos. Paulo trabalhou para mudar
esta situação em favor da monogamia (I Coríntios 7.2; Efésios 5.22,24; I
Timóteo 3.2), mas sabia que estava “lançando as bases para conquistar o ideal
ético bíblico”.
Outra
questão cultural que conflitava com o ensino bíblico era a escravidão. Ao passo
que a poligamia era exceção no mundo greco-romano e judaico, a escravidão era
endêmica, pois “a escravidão era universal e inseparável da textura da
sociedade. Tem-se estimado que, no tempo de Paulo, havia tantos escravos,
quanto homens livres em Roma e a proporção de escravos para homens livres, na
Itália, era de três para um” (LADD, 1985, p. 490). Qual o princípio bíblico
pressuposto nos textos da criação? A de que todo ser humano é livre porque cada
um foi criado à imagem de Deus (Gênesis 1.27). Além disso, a ordem divina é que
homem e mulher deveriam dominar a natureza e os demais seres: “enchei a terra e
sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos
os animais que se arrastam sobre a terra” (Gênesis 1.28). Em nenhum lugar é
dito que eles deveriam dominar outros seres humanos. As sociedades formadas
pelos homens produziram culturas favoráveis à escravidão. Assim, a escravidão
tornou-se um costume cultural do mundo antigo e o era na época de Paulo.
Em
I Coríntios 7.21-24, Paulo assim se manifesta com respeito ao assunto:
foste chamado sendo
escravo? Não te dê cuidado; mas se ainda podes tornar-te livre, aproveita a
oportunidade. Pois aquele que foi chamado no Senhor, mesmo sendo escravo, é um
liberto do Senhor; e assim também o que foi chamado sendo livre, escravo é de
Cristo. Por preço fostes comprados; não vos façais escravos de homens. Irmãos,
cada um fique diante de Deus no estado em que foi chamado.
O chamado ao qual ele se refere é a
conversão a Jesus Cristo. O que a pessoa era na sociedade, devia continuar a
ser. Apesar de saber que a liberdade é um valor superior provindo do próprio
Deus, Paulo nunca falou contra a escravidão e nunca incitou os escravos
cristãos a se rebelarem. Pelo contrário, quando o escravo fugitivo Onésimo se
converteu através de sua pregação, Paulo o mandou de volta ao seu senhor (Filemom
v. 12). A ordem é: se você se converteu sendo escravo, continue escravo e não
se preocupe com isto (v. 21). No entanto, como a liberdade é uma forma superior
e melhor de vida, ele diz que, se o escravo tem uma oportunidade, legal e
cultural, de tornar-se livre, deve aproveitá-la (v. 21). Para Paulo, um cristão
tornar-se um escravo de homens, era inaceitável, pois já havia sido comprado
por preço (v. 23): deveria permanecer livre. No v. 22, Paulo faz a compensação
ao escravo cristão que se mantém como tal: “pois aquele que foi chamado no
Senhor, mesmo sendo escravo, é um liberto do Senhor; e assim também o que foi
chamado sendo livre, escravo é de Cristo”. No Senhor, o escravo não é mais
escravo, é um homem livre. A sociedade ainda o acorrenta, mas em Cristo tudo é
conforme os mais altos princípios de Deus. Mesmo não rompendo, naquele momento,
com a escravidão, Paulo lança uma base que iria fermentar a Igreja e a
sociedade em relação a este fenômeno.
Outro
momento em que Paulo fala mais detidamente sobre o assunto é em sua carta a
Filemom. Paulo estava em uma prisão em Roma (v. 9,13). Paulo evangelizou e
converteu um escravo fugitivo chamado Onésimo (v. 10). Paulo soube que o senhor
de Onésimo era Filemom, outro discípulo que ele havia ganho para Cristo (v.
19). Escreve uma carta a Filemom para dizer que envia Onésimo de volta, agora
como um escravo útil (v. 11). São preciosas as palavras que Paulo usa acerca da
forma como Filemom deve receber seu escravo Onésimo:
porque bem pode ser
que ele se tenha separado de ti por algum tempo, para que o recobrasses para
sempre, não já como escravo, antes, mais do que escravo, como irmão amado,
particularmente de mim, e quanto mais de ti, tanto na carne como também no
Senhor (v. 15,16).
É certo que Paulo não falou contra a
escravidão, mas o que ele estava fazendo ao dizer a um senhor de escravos que
deveria tratar um escravo fugitivo “não já como escravo, antes, mais do que
escravo, como irmão amado” senão destruir toda a base ideológica cultural da
escravidão? No entanto, quando apela neste sentido a Filemom, o argumento de
Paulo é que Onésimo é agora um “irmão amado”, ou seja, todos eles estão “em
Cristo”. A salvação de Jesus trouxe um nivelamento de todas as pessoas como
irmãos (a nova era de Cristo), embora eles continuassem a ser senhor e escravo
na sociedade (a velha era), pois “
a fé cristã é para
ser vivida dentro dos contextos das estruturas sociais existentes, pois elas
pertencem à forma deste mundo, que passará (I Cor. 7.31) [...] Não há nenhuma
palavra para libertar o escravo. No entanto, dentro do relacionamento da
Igreja, tais distinções sociais foram ultrapassadas (I Cor. 12.13; Gál. 3.28),
embora não pudessem ser evitadas na sociedade (LADD, 1985, p. 491).
Para
quem lê literalmente o Novo Testamento, Paulo é a favor da escravidão e quer
que os escravos continuem nesta condição: “foste chamado sendo escravo? Não te
dê cuidado” (I Coríntios 7.21); “porque bem pode ser que ele se tenha separado
de ti por algum tempo, para que o recobrasses para sempre” (Filemom 15); “vós,
servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne, com temor e tremor, na
sinceridade de vosso coração, como a Cristo” (Efésios 6.5); “vós, servos,
obedecei em tudo a vossos senhores segundo a carne” (Colossenses 3.23). Este é
o perigo de ler literalmente as Escrituras sem aprofundar-se nos conceitos que
ela expressa. Aquele que percebe que Jesus Cristo veio para inaugurar o seu
Reino (que é uma nova era onde habita a justiça, o amor, a paz, a misericórdia,
a solidariedade, o respeito, a liberdade), e que este se sobrepõe às culturas
humanas, perceberá que determinados mandamentos bíblicos estão atrelados a suas
épocas e sociedades e devem ser interpretados de acordo com os princípios
maiores do Reino. Ridderbos assim se manifesta sobre o tratamento que Paulo dá
à escravidão:
por certo, fica
aparente aqui que Paulo não pensava na abolição da escravatura como instituição
por motivos cristãos. [...] Pode-se observar pelo simples fato de Paulo
dirigir-se sucessivamente aos escravos e senhores como membros iguais da igreja
e descrever o relacionamento entre eles como sendo de responsabilidade mútua, o
quanto esta postura significou uma revolução. De maneira alguma ela podia ser
conciliada com a posição do escravo no
mundo daquela época e nem dentro do judaísmo. [...] Não se pode negar que, ao
mesmo tempo, foi introduzida uma enorme tensão na escravidão como sistema
social, mas ainda assim, isso deve ser visto, tanto quanto podemos entender,
mais como uma consequência do que como um objetivo deliberado das admoestações
de Paulo (RIDDERBOS, 2014, p. 348).
A
questão da subordinação da mulher nos escritos de Paulo segue a mesma linha do
que foi dito acerca da poligamia e da escravidão. Ele segue a ideia básica de
que os cristãos (a Igreja) vivem em duas eras ao mesmo tempo: a nova era
inaugurada por Cristo, o seu Reino, e a antiga era dominada pelos efeitos da
queda no Éden. Em Romanos 5.12-21, ele denomina esta situação entre os que
estão “em Cristo” e os que estão “em Adão”. Adão aqui não é apresentado como o
homem da criação no Éden, mas aquele através de quem o pecado entrou no mundo e
passou esta condição a todos os homens (v. 12). Estar em Adão é ser pecador e
estar debaixo dos efeitos da queda. Estar em Cristo é ser constituído justo por
ele (v. 19) e reinar em vida por meio dele (v. 17).
Em
primeiro lugar, Paulo estabelece o princípio de igualdade das mulheres em
relação aos homens, decorrente da nova era da salvação. Textos como Gálatas
3.28 e I Coríntios 13, são emblemáticos neste sentido. Da mesma forma como
Jesus estabeleceu uma hierarquia de valores colocando o amor e o respeito ao
próximo em primeiro lugar (Mateus 22.35-40; 7.12), Paulo mostra os valores do
Reino de Deus como importantes para a vivência da Igreja. Ela já vive na salvação
de Deus e julga a cultura de acordo com estes padrões. Por conta de também
viver na presente era, a Igreja tanto se adaptará à sociedade onde se encontra
como também promoverá mudanças dentro dela.
A
quebra de todas as diferenças sociais em Cristo tem um profundo impacto nesta
mesma sociedade. Como já foi dito, os papéis sociais de Gálatas 3.28 continuam
os mesmos, mas aconteceu uma mudança interna, tanto nas pessoas que participam
desta fé, quanto no grupo que elas passam a integrar dentro da sociedade, que é
a Igreja cristã. A fé em Jesus vai dizer que judeus e gentios são iguais neste
Reino que pertence ao Senhor. Vai dizer que, em Cristo, todos são livres,
embora temporalmente, alguns continuem escravos. Vai dizer que, embora
continuem com a sexualidade que a natureza lhes deu, são agora iguais e não há
mais superioridade de uns em relação a outras. Com o crescimento da Igreja
cristã e sua influência, chegou o tempo em que as próprias sociedades humanas
se apegariam aos princípios advindos desta doutrina e fariam uma declaração
universal dos direitos humanos, aboliriam a escravatura, instituiriam o voto
universal e a democracia, nivelariam a mulher ao homem com todos os direitos
inerentes, etc. Não é à toa que todas estas conquistas se deram em países de
tradição cristã. O princípio de Paulo diz respeito à Igreja, mas sem dúvida
seria um avanço também para as sociedades por ela influenciadas. Esta visão de
Paulo mudaria as sociedades. A grande tragédia para o cristianismo é que sua
Igreja, na prática, aceitaria as consequências destes princípios de Paulo
depois da sociedade, como foi o caso da escravidão e agora, da igualdade de
homens e mulheres.
Em
segundo lugar, Paulo respeita as culturas onde os cristãos estão inseridos. A
cultura da época paulina é patriarcal. O marido/pai tinha todo o poder dentro
da família, pois “as relações familiares eram de dominação pelo chefe da casa e
de subordinação por parte da esposa, dos filhos e escravos e isso constituía a
célula básica da construção do Estado, uma estrutura que se refletia nas
classes e no status social” (MATOS, 2004, p. 79). Quando fala em I Coríntios 14
e em I Timóteo 2, acerca das reuniões da igreja, qual não seria a vergonha,
dentro de uma sociedade deste tipo, que as mulheres não trariam para a igreja e
seus maridos se começassem a exercer autoridade sobre os homens e tomassem a
liderança em todas as reuniões. A igreja seria imediatamente mal vista por toda
a sociedade e isto poderia implicar em perseguição contra ela por parte da
sociedade e do Estado. O princípio que Paulo tem em mente é o não impedimento,
por conta de desrespeitos à cultura local, da salvação de todos conforme I
Coríntios 10.32-33:
não vos torneis causa
de tropeço nem a judeus, nem a gregos, nem a igreja de Deus; assim como também
eu em tudo procuro agradar a todos, não buscando o meu próprio proveito, mas o
de muitos, para que sejam salvos.
Não tornar causa de tropeço significa
não afrontar os costumes que a sociedade da época pratica. Como o costume da
submissão da mulher era generalizado em todo o Império Romano, essa era uma
regra que deveria ser seguida. Por esta razão, Paulo não permitia que a mulher
ensinasse na igreja ou exercesse domínio sobre os homens e dizia que ficassem
caladas na igreja. Por esta razão também, ele diz que os bispos devem ser
maridos de uma só mulher e “que governe bem a sua própria casa, tendo seus
filhos em sujeição, com todo o respeito” (I Timóteo 3.2,4). Na compreensão
paulina, a Igreja ainda está nesta velha era, e participa da situação humana decorrente
da queda.
No
entanto, todas as vezes em que Paulo subordina a mulher ao homem por questão
cultural, ele compensa ensinando os princípios da nova era em Cristo. No texto
de I Coríntios 11, acerca do véu das mulheres, ele insere os v. 11,12. Ele
começa o v. 11 dizendo: “no Senhor”, a indicar que antes estava falando da
questão cultural local, mas agora fala da nova era. Sua argumentação é que homens
e mulheres não são independentes e ambos vêm de Deus. Em I Coríntios 14.34,35,
as mulheres devem ficar caladas na igreja não podendo ensinar, mas podem
profetizar e orar (11.5; 14.29-31). Em I Timóteo 2.9-15, onde a mulher não pode
ensinar e nem exercer autoridade sobre homem, ele insere o v. 15 que diz
respeito à “salvação” da mulher, ou seja, acerca da nova era em Cristo e que a
faz ser protagonista no Reino de Deus. Até mesmo no texto acerca da família
(Efésios 5.22-33), onde Paulo advoga claramente a liderança masculina, há
compensações às mulheres. Se elas devem submissão aos maridos (v. 22), eles devem
amá-las como Cristo amou a Igreja, ou seja, a ponto de se auto sacrificar em
favor dela. Os maridos devem ter igual
cuidado por elas como a seus próprios corpos (v. 28,29) por qual motivo?
“Porque somos membros do seu corpo” (v. 30). Paulo apresenta estas compensações
em relação à mulher e diz que a relação marido/mulher deve ser diferente
daquele que é o costume usual praticado pela sua sociedade simplesmente porque
fazemos parte do Corpo de Cristo, a Igreja. É no âmbito da nova era do Senhor
que os comportamentos culturais vão sendo mudados.
Outra
observação é que Paulo, sempre que não houvesse “pedra de tropeço”, procurava,
na prática da vida, igualar homens e mulheres. Em Romanos 16, quando saúda
muitos irmãos que estão em Roma, ele fala de várias mulheres que trabalharam
tanto quanto os homens no Reino de Deus e algumas em posição de liderança.
Temos Febe (v. 1,2) que é diaconisa (grego: diáconos)
e patrona, líder (grego: prostatis,
v. 2)
Febe é também a única
em Romanos 16 a quem a palavra prostatis
é empregada. Prostatis é a forma
feminina de um substantivo que significa “líder, pessoa que preside, que fica à
frente, patrono”. Este substantivo provém da raiz verbal proistemi, que significa “governar e cuidar” como vemos em quatro
passagens (I Timóteo 3.4,5,12; 5.17) (MICKELSEN, 1996, p. 231-232).
Encontramos o casal Priscila e Áquila
(v. 3) que ele qualifica de “meus cooperadores” (interessante é o fato de Paulo
citar a mulher antes do marido, incomum para a época). Maria (v. 6) “muito
trabalhou por vós”. No v. 12: “saudai a Trifena e a Trifosa, que trabalham no
Senhor. Saudai a amada Pérside, que muito trabalhou no Senhor”. No v. 7, ele
diz: “saudai a Andrônico e a Júnias, meus parentes e meus companheiros de
prisão, os quais são bem conceituados entre os apóstolos, e que estavam em
Cristo antes de mim”. Andrônico e Júnias são chamados de “apóstolos”. Há uma
grande discussão se “Júnia” é um nome feminino ou masculino (ver para nome
feminino: MICKELSEN, 1996, p. 232-233; SILVA, 2013, p. 139; autores que
manifestam incerteza: BRUCE, 1979, p. 219; LOPES, 2015, p. 4). Segundo Silva,
“vale ressaltar que 9 mulheres são mencionadas ao lado de 17 homens na lista de
saudação de Romanos 16.1-16 proporção numérica admirável para o contexto das
relações patriarcais” (2013, p. 139). Richardson (apud MICKELSEN, 1996, p. 233) afirma: “o que esta relação demonstra
é que num simples ambiente (Rm 16), numa lista coerente de saudações, as
mulheres recebem mais honrarias do que os homens, a despeito do número destes
ser superior e a elas se atribuem papéis mais influentes!”. Em Filipenses
4.2,3, Paulo cita Evódia e Síntique e diz que “trabalharam comigo no
evangelho”. Em I Timóteo 3.8-13 ao falar acerca dos diáconos, Paulo diz no v.
11: “da mesma sorte as mulheres sejam sérias, não maldizentes, temperantes e
fiéis em tudo”. As mulheres eram diaconisas na Igreja Primitiva, posição de
destaque e liderança, mesmo num mundo patriarcal.
3.3
A POSSIBILIDADE PAULINA DO MINISTÉRIO PASTORAL FEMININO
Quando
se trata especificamente da mulher assumir o pastoreio de uma igreja nos tempos
atuais, a que conclusões chegamos dos escritos de Paulo? Será possível retirar
princípios que, aplicados ao tempo e à cultura atual, permitam o exercício do
ministério pastoral feminino? Teólogos divergem acerca desta possibilidade no
ensino de Paulo.
Lopes,
comentando os textos de Coríntios e Timóteo, manifesta-se contrário,
argumentando que
o princípio por detrás desta ordem
(mulheres usarem o véu), conforme vimos acima, é o de apresentarem no culto em
plena submissão à liderança masculina cristã. O uso do véu é a forma contextualizada pelo qual esse
princípio se expressava. Hoje em dia, nas culturas ocidentais, o uso do véu não
é uma expressão apropriada deste princípio. O princípio permanente que está subjacente em 1 Coríntios 11.2-16,
14.34-35 e 1 Tm 2.11,12 é o de que se mantenham as distinções e os papéis
intrínsecos ao homem e à mulher na igreja e na família. Assim, a mulher não
deve inverter os papéis, e ocupar posição de autoridade sobre os homens, quer
seja para governá-los ou para ensiná-los. (2015, p. 20-21) (grifos do autor).
Grudem também se manifesta contrário a
essa possibilidade:
essas (ensino e
exercício de autoridade) eram as funções dos presbíteros da igreja e
especialmente dos que conhecemos como pastor na igreja atual. São
especificamente estas funções singulares de um presbítero que Paulo proíbe que
as mulheres exerçam na igreja (1999, p. 787).
Foh também se posiciona
contrariamente: “com respeito aos cargos da igreja, as mulheres não podem ser
presbíteras (nem pastoras-mestras, nem evangelistas, nem ministras, como às
vezes são designadas), porque esses cargos envolvem o ensino e o governo”
(1996, p. 122).
Por
outro lado, Mickelsen mostra-se favorável, pois:
homens e mulheres
cristãos não devem enredar-se e prender-se sob um jugo escravizador. Homens e
mulheres devem pregar. Mulheres e homens devem fazer discípulos. Devem
ministrar com os dons do Espírito. Cristo libertou homens e mulheres para que
sirvam, amem, fortaleçam e apoiem as pessoas e delas cuidem. [...] O ensino de
Gênesis, a vida e os ensinos de Jesus, o escopo e dos escritos e da prática de
Paulo – tudo isso aponta para a completa dignidade das mulheres que têm sido
chamadas e dotadas de talentos pelo
próprio Deus, a fim de que sirvam à igreja e ao mundo (1996, p. 250) (grifo
do autor).
Liefeld aponta para princípios,
extraídos dos textos de Paulo, que permitem, hoje em dia, aceitar a liderança
da mulher na igreja:
Paulo tinha um
princípio básico que requeria a subordinação temporária dos demais princípios.
Em Gálatas, Paulo estabeleceu o princípio de que o crente está “morto” para a
lei. A salvação não é obtida mediante fazer-se as obras da lei do Antigo
Testamento. Paulo insiste em sua autoridade de apóstolo. Como vimos, ele também
estabeleceu um princípio concernente ao homem e à mulher em Cristo. Mas em I
Coríntios, Paulo diz que ele, o apóstolo da liberdade da lei, está disposto a
tornar-se “como sob a lei” a fim de ganhar os que estão sob a lei. O fato de
assumir esta notável posição como que para remover as barreiras do evangelho,
sem mudar sua posição sobre a salvação, à parte das obras da lei, deveria
alertar-nos para a realidade de que ele também pode acomodar as normas sociais
dos judeus e outras, concernentes às atividades públicas das mulheres, sem
mudar sua posição, que é a da igualdade entre homens e mulheres. Se algumas
pessoas do tempo de Paulo consideravam vergonhoso que a mulher falasse em
público, ou aparecesse em público sem um véu facial, ou usasse o cabelo solto
caindo sobre os ombros, quais são as implicações do fato de que, em nossos
dias, e em nossa sociedade, é vergonhoso restringir as mulheres, tirando-lhes a
igualdade com os homens, e a total oportunidade de expressão? (1996, p. 172-173).
Ladd, discutindo a aplicação da ética
social de Paulo, conclui:
a situação cultural e
a estrutura da Igreja são bem diferentes do cristianismo do primeiro século, e
o crente moderno não pode aplicar os ensinamentos da Escritura num
relacionamento de igual para igual, mas deve buscar a verdade básica que subjaz
às formulações particulares em o Novo Testamento (1985, p. 489).
Os
tempos passaram-se e as culturas e sociedades se transformaram. O Ocidente
sofreu modificações nestes 21 séculos que o separam do Novo Testamento. Nas
três questões éticas discutidas, o Ocidente firmou a monogamia, aboliu a
escravidão e deu plenos direitos às mulheres ao ponto de algumas delas
tornarem-se chefes de Estado. Todos estes avanços sociais foram conquistados
exatamente pela tradição cristã de suas sociedades. Estes avanços não ocorreram
nos países de tradição muçulmana, hinduísta, budista e de outras religiões. Se
alguns países destas tradições assumiram estes avanços foi por conta da
influência do Ocidente. É neste novo contexto que deve-se entender os
ensinamentos de Paulo e de toda a Bíblia acerca do ministério pastoral
feminino.
Precisamos entender
que nos dias de Paulo o fato de uma mulher falar em público e ensinar na igreja
constituía um problema moral que trazia vergonha à igreja e ao Senhor,
impedindo as pessoas de virem a Cristo. Mas isto não constitui um problema na
maior parte das sociedades de hoje, pelo menos no mundo ocidental. Na verdade,
a situação sofreu uma reversão: proibir uma mulher de ter a mesma dignidade e
oportunidade na Igreja de que ela desfruta na sociedade constitui uma pedra de
tropeço para muitas pessoas. Portanto, ao tentar honestamente fazer a mesma
aplicação (o silêncio das mulheres) em vez de seguir o mesmo princípio (evitar
a vergonha e a desonra sobre o marido), cometemos hoje o mesmo erro que Paulo procurou
evitar, isto é, ofender as sensibilidades morais das pessoas e impedi-las de
aceitar o Evangelho (LIEFELD, 1996, p. 170-171).
As restrições bíblicas que impediam a
mulher de ser pastora no período do Novo Testamento acabaram-se com a mudança
das culturas das sociedades. As restrições paulinas estavam ligadas exatamente
à cultura das sociedades onde ele vivia. Paulo, embora obediente aos costumes
culturais de sua época para não “por tropeço” à pregação do evangelho, sabia
que, em Cristo, a nova era de Deus havia se iniciado e invadira a velha era de
Adão. Em seus ensinos e na sua prática de vida, igualou homens e mulheres no
Reino de Deus. Hoje, quando as práticas culturais foram mudadas e as mulheres
assumiram seus direitos de igualdade com os homens, caíram por terra as
restrições paulinas para o ministério pastoral feminino, mas permanecerão, para
sempre, os princípios do Reino de Deus, a nova era de Cristo, pelo qual ele
sempre lutou: “não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem
nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”. Esta nova era de Cristo,
embora aqui e agora tenha invadido a presente era má, não chegou à sua
consumação. Perto de sua morte, ao escrever sua segunda carta ao pastor
Timóteo, ele assim se expressa sobre esta consumação e sobre a existência aqui
e agora: “e o Senhor me livrará de toda má obra, e me levará salvo para o seu
reino celestial; a quem seja glória para todo o sempre. Amém. Saúda a Priscila
e a Áquila e à casa de Onesíforo” (II Timóteo 4.18,19).
4 CONSIDERAÇÕES
FINAIS
A
investigação nos escritos e teologia do apóstolo Paulo acerca da possibilidade
do ministério pastoral feminino apontou caminhos para desvendar seu pensamento.
Há
três textos relevantes nos escritos paulinos: Gálatas 3.26-29, I Coríntios
11-14 e I Timóteo 2.8-15. No primeiro texto (Gl. 3.26-29), Paulo expressa um
princípio bíblico extremamente importante que ultrapassa a área da
soteriologia: “em Cristo Jesus, não há homem nem mulher”. Este é um princípio
que, pelo seu valor, regerá as demais orientações. Nos outros textos (I Co
11-14 e I Tm 2.8-15), ele restringe a atuação das mulheres na igreja, em
especial na área da liderança pastoral. Ele assim o faz com base no respeito à
cultura da época que era fortemente patriarcal. Mas, mesmo nestes textos, ele
compensa a situação subordinada da mulher, lembrando acerca dos princípios e
posição dos que estão “em Cristo”.
A
teologia paulina fala de duas eras: a atual que procede da queda de Adão e onde
todos estão e a nova era que foi inaugurada por Cristo com sua morte e
ressurreição. Esta nova era, também chamada Reino de Deus, escatologicamente
invadiu a história e formou um povo: a Igreja, comunidade dos que creem em
Jesus Cristo. Ocorre que a Igreja vive em duas eras ao mesmo tempo e deve
conciliar estas vivências. Viver na nova era de Cristo significa alcançar os
princípios desta nova vida, que é a de Deus. Viver na era antiga significa
discernir, dentro de cada sociedade e cultura, o que é bom e o que é mal. Este
discernimento leva a Igreja a conformar-se com os costumes locais e temporais,
mas com o firme propósito de modificá-los sempre de acordo com os princípios
superiores da nova era em Cristo. Três costumes da época de Paulo são
apresentados: a poligamia, a escravidão e a subordinação da mulher na sociedade
e na Igreja. Para cada um desses problemas, Paulo pode conviver, pois são
costumes sociais da presente era. Ele faz isto com o firme propósito de não
colocar “pedras de tropeço” na Igreja a fim de que o evangelho possa ser
pregado sem restrição e mais pessoas sejam salvas. Mas, ao mesmo tempo, sua
orientação provocará uma erosão das bases filosóficas e ideológicas que
sustentam estes costumes.
Por
fim, os princípios superiores da teologia paulina levam ao entendimento de que
a mudança da cultura da sociedade leva a uma nova postura da Igreja. Se, no
primeiro século, era vergonhoso para a mulher falar em público e liderar
homens, tal vergonha não existe mais. Pelo contrário, hoje é vergonhoso proibir
a mulher de fazer tais coisas. Continuam de pé os princípios paulinos de que
não devemos colocar “pedras de tropeço culturais” para que as pessoas venham a
Cristo e que nele “não há homem, nem mulher”.
Este
TCC trabalhou a visão paulina do assunto ministério pastoral feminino. A
continuidade dos estudos deste assunto pode seguir dois caminhos: o primeiro é
estudar como este assunto é tratado pelos outros escritores da Bíblia, olhando
principalmente o pensamento e a ação de Jesus. Um segundo caminho é aprofundar
a pesquisa para saber se, no pensamento paulino e bíblico, há diferença na
subordinação da mulher ao marido na família e a subordinação feminina na Igreja
e na sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
I ENCONTRO SOBRE MINISTÉRIO PASTORAL
FEMININO. Faculdade de Teologia I. M. S. de Rudge Ramos SP, 1976. 35 p.
ALAND, Kurt et al. The
Greek New Testament. 3.ed. Munster: United Bible Societies, 1975.
BÍBLIA. Português. A Bíblia Sagrada – Velho Testamento e Novo
Testamento. João Ferreira de
Almeida. Versão Revisada. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1988.
BRUCE, F. F. Romanos: introdução e comentário. São Paulo: Mundo Cristão e Vida Nova, 1979.
CARVALHO, Cleilton Santos de. Tensão, paradigmas e inovações: um estudo
das contribuições sociológicas para o dilema da ordenação feminina ao pastorado
batista brasileiro. São Bernardo do Campo, 2002. Dissertação (Mestrado em
Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do
Campo, 2002.
CINTRA, Zenilda. A CBB aceita
pastoras. Blog da Pastora Zenilda.
Disponível em http://pastorazenilda.blogspot.com. Acesso em:
12 dez. 2015.
CULVER, Robert D. “Um ponto de vista
tradicional: que as mulheres fiquem em silêncio” in: CLOUSE, Robert G; CLOUSE,
Bonnidell (org.). Mulheres no ministério.
São Paulo: Mundo Cristão, 1996.
FOH, Susan T. “Um ponto de vista da
liderança masculina: o cabeça da mulher é o homem” in: CLOUSE, Robert G;
CLOUSE, Bonnidell (org.). Mulheres no
ministério. São Paulo: Mundo Cristão, 1996.
GRUDEM, Wayne. Teologia
sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1999.
LADD, George Eldon. Teologia
do Novo Testamento. Rio
de Janeiro: Juerp, 1985.
LIEFELD, Walter L. “Um ponto de vista
do ministério diversificado: vossos filhos e vossas filhas profetizarão” in:
CLOUSE, Robert G; CLOUSE, Bonnidell (org.). Mulheres
no ministério. São Paulo: Mundo Cristão, 1996.
LOPES, Augustus Nicodemus. Ordenação
feminina: o que o Novo Testamento tem a dizer. Sola Scriptura. Disponível em http://solascriptura-tt.org/EclesiologiaEBatista/OrdenaçaoFeminina-Nicodemus.htm. Acesso em: 06 jun. 2015.
MATOS, Keyla Carvalho. Protagonismo e resistência de mulheres no
discurso de Paulo em 1 Coríntios 11 e 14. Goiânia, 2004. 179 f. Dissertação
(Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Católica de Goiás, Goiânia,
2004.
MICKELSEN, A lvera. “Um ponto de vista igualitário: não há homem nem mulher
em Cristo” in: CLOUSE, Robert G; CLOUSE, Bonnidell (org.). Mulheres no ministério. São Paulo: Mundo Cristão, 1996.
MOULTON, Harold K. The Analytical Greek Lexicon Revised. Grand
Rapids: Zondervan, 1978.
REGA, Lourenço Stelio. “Ética em
Paulo” in: REGA, Lourenço Stelio (org.). Paulo
e sua teologia. São Paulo: Vida, 2009.
RIDDERBOS, Herman. A
Teologia do apóstolo Paulo. 2.ed. São
Paulo: Cultura Cristã,
2014.
RIENECKER,
Fritz e ROGERS, Cleon. Chave linguística do Novo Testamento
grego. Vida Nova: São
Paulo, 1985.
RODRIGUES, Silvia Gerusa Fernandes.
Um
outro gênero de igreja:
as mulheres e sua ordenação sacerdotal. São
Paulo: Fonte, 2011.
ROSÁRIO, Alexandra Costa de Santana. A
mulher e o trabalho eclesiástico: uma reflexão a partir do olhar evangélico. Revista
Eletrônica da Faculdade Evangélica do Paraná, Curitiba, vol. 2, n. 3,
p. 97-107, jul/set 2012.
SILVA, Roberta Alexandrina da. O
problema do 1 Coríntios 11,1-6 e a
questão de gênero na igreja de Corinto. Romanitas – Revista de Estudo
Grecolatinos, Vitória/ES, n. 1, p. 13-22, 2013.
Pastor Whitson Ribeiro da Rocha
ResponderExcluirEstou fazendo pesquisa sobre ordenação pastoral feminina e a critério do meu orientador, me foi solicitado encontrar a definição de pastor em escritos de alguns autores.
Mudei a pergunta da pesquisa quando encontrei este material muito interessante e maravilhoso feito por vocês e que me chamou muito a atenção por ter em seu conteúdo grandiosas informações para meu trabalho de TCC.
Contudo, ainda me encontro sem direção de como iniciar o meu TCC e gostaria de saber se poderia contar com algum tipo de ajuda da sua parte para dar início a monografia.
Com muita gratidão
Cordialmente.
Patricia Melo
Patricia Melo
Prezada Patrícia:
ExcluirDesculpe o atraso da resposta, mas só vi seu comentário hoje. Dentro do meu possível, posso ajudá-la sim. Creio que o meu TCC e a bibliografia que está ali podem lhe ajudar. Estou à sua disposição, mas preciso entender o que você realmente deseja pesquisar no seu TCC. Se possível, entre em contato comigo pelo e-mail whitsonrocha@gmail.com . Um abraço.